A proibição que José Luís Carneiro impôs aos candidatos autárquicos sobre aproximações pós-eleitorais com o Chega está a ser colocada por vários socialistas ouvidos pelo Observador entre o inútil e o impossível de garantir. Inútil porque existe a convicção de que autarcas eleitos pelo PS dificilmente farão acordos de coligação com o Chega, mas ao mesmo tempo é impossível de garantir que depois das eleições não procurem de todo eleitos pelo Chega para conseguirem governar. E já há sinais nesse sentido.
Nas autarquias, governa quem fica à frente nos votos, mas a capacidade de execução fica dependente da capacidade para fazer maiorias na Câmara. Numas eleições em que o elemento Chega ameaça ganhar um novo peso, o quadro de governabilidade complica-se: fragmentam-se os votos, logo, é mais difícil garantir a maioria absoluta de vereadores para um único partido ou coligação. “Vai ser impossível controlar” o que farão os eleitos no dia seguinte, avisa um dirigente socialista quando confrontado com o que o líder do PS inscreveu no compromisso autárquico do partido.
Os candidatos do PS comprometem-se oficialmente a orientar-se, “na ação e no discurso, pela declaração de princípios do PS e por ideais humanistas, de cosmopolitismo, de primado da razão, de progresso e de sustentabilidade, fazendo acordos pós-eleitorais apenas com quem prossiga aqueles mesmos ideais”, inscreveu José Luís Carneiro no compromisso que os candidatos pelo partido assinaram. Dúvidas houvesse sobre o que se pretendia e, na Convenção Autárquica do partido, o líder socialista detalhou: “Podem confiar nas candidatas e nos candidatos do PS porque, mesmo que não alcancem as maiorias que desejavam, serão sempre a garantia destes valores fundamentais. Nunca se colocarão do lado daqueles que querem atacar a democracia”.
Nada de acordos de governação com o Chega — sob pena de retirada da confiança política pelo partido –, mas o espírito do compromisso também pretende dar um sinal para entendimentos em “questões estruturais” como propostas de orçamento, detalha um alto dirigente do partido. No topo do partido sublinha-se o limite da “autonomia” e das “dinâmicas próprias” das câmaras e, embora se reconheça que “não se pode proibir o Chega de viabilizar um orçamento”, o compromisso também pretende desincentivar negociações nesse sentido por parte de autarcas PS.
“É um statement político, mas a realidade é mais complexa do que isso”, diz um dirigente do partido ao Observador. “A aplicabilidade vai ser muito complexa”, considera outro que diz que “questões do terreno, necessidades locais e relacionamentos próximos vão impor-se”. “É uma clausula de seguro mais do que um manual de instruções”, advoga ainda outro responsável do partido.
“Deve haver autarcas cujos orçamentos podem ser viabilizados pelo Chega, mas sem entendimentos de mandato e duvido que José Luís Carneiro chegue a esse detalhe”, antevê um alto quadro do partido em modo de conselho. Todos pouco convictos de que, no dia seguinte, os socialistas que precisarem não se virem para onde for necessário para garantir condições de governação nas câmaras que vencerem.
O compromisso escrito fala em “acordos pós-eleitorais”, mas o líder do PS foi claro ao dizer que o princípio válido para o dia seguinte às autárquicas é que os autarcas eleitos pelo partido “nunca se colocarão do lado dos que querem atacar a democracia”. Na prática, no passado recente, foi o que fez Ricardo Leão em Loures, por exemplo, ao apoiar uma proposta do Chega para retirar casas municipais a quem tem cadastro, “sem dó nem piedade” — e que tanta polémica interna provocou. Que fez e que voltaria a fazer.
No recente carpool do Observador, o presidente da Câmara de Loures eleito pelo PS e recandidato ao cargo recusou acordos de governação com o Chega: “Nem pensar”. E daí não quis sair para evitar essa colagem que tanto lhe atribuem — no último mandato esteve coligado com o PSD e é o que pretende repetir, mas é preciso que a votação dos sociais-democratas o permita, quando que tem o Chega em crescendo no concelho. Agora, quando é questionado pelo Observador sobre o dia seguinte, acrescenta que essa linha vermelha não é válida para negociações pontuais, como “propostas ou moções”, por exemplo. E sobre o que vir da oposição a mesma postura: “Era o que faltava votar contra só porque vêm do Chega”, diz garantindo: “Se concordar, voto a favor”.
Carpool com Ricardo Leão: Chega à perna em Loures? “Eu tenho a perna grossa”
No final da semana passada, outro candidato autárquico do partido e também membro da direção do PS fez declarações no mesmo sentido. No debate dos candidatos autárquicos em Viseu, transmitido pela rádio Observador, João Azevedo foi confrontado com o que diz o compromisso e como garante que consegue governar sem maioria. Resposta: “É uma pergunta clara e objetiva. Nós governamos numa autonomia política por isso não temos razões nenhumas para colocar de parte quem quer que seja. É preciso dizer isto de forma muito clara.” “Normalmente a tendência é levar a gestão para a bandeira partidária e eu sempre fiz o contrário: governar para as pessoas, respeitar as pessoas e incluir as pessoas que estejam por bem”, detalhou Azevedo.
Mesmo quando confrontado com a diretiva da direção que integra, Azevedo disse na rádio que “a indicação nacional é feita por quem tem essa autoridade. Nós decidimos, com grande respeito pelas instituições, mas esse é o quadro objetivo em termos da democracia e da autonomia que também temos. Isso não é problema nenhum”.
Mas algum problema acabou por ter já que, no dia seguinte, Azevedo sentiu necessidade de vir negar, num comunicado, que isso quisesse dizer que tem um acordo de governação com o Chega. “Jamais faria um acordo com um partido populista que não respeita os princípios e valores democráticos e solidários que estiveram na base da fundação do PS”, escreveu.
E negociações para conseguir aprovar propostas na Câmara? “Estarei disponível para dialogar com todos aqueles que estiverem pelo bem do concelho de Viseu”, reafirmou nessa mesma nota que enviou à comunicação social. E confirmou em conversa com o Observador: “No quadro do executivo irei dialogar com os que forem eleitos na defesa dos interesses dos viseenses”.
“O princípio vai chocar com o pragmatismo”, comenta com o Observador um dirigente local do partido que aponta vários exemplos de executivos onde o número de vereadores por ser mais reduzido e onde a “tentação” para desbloquear com recurso ao Chega será maior. “Percebo o princípio. O Chega tem mais deputados do que o PS no Parlamento e tem sido esse discurso face ao Governo, mas não sei se vai ter aplicação prática”, conclui sobre as autárquicas.
“O que vai ser inevitável é muitos negociarem com vereadores eleitos quer sejam do PSD, CDU ou do Chega. Vai ser impossível controlar porque a tentação para presidentes de câmara gerarem equilíbrios para terem maioria vai ser muito grande”, adianta outro dirigente na mesma linha de raciocínio.
“As câmaras com maiorias vão ser muito menos, com as eleições muito divididas entre PS, PSD e Chega”, acredita um alto quadro do partido. Um cenário que “exige muito diálogo mesmo que não haja entendimentos”, adverte mesmo admitindo que o PSD mais facilmente fará acordos de gestão com o partido de André Ventura do que o PS.
Certo é que um PS totalmente fechado ao diálogo pode perder mais do que os outros partidos, nas contas dos socialistas. A ingovernabilidade pesará mais para quem tiver mais agrilhoado no atual contexto. “Vai haver um problema de governabilidade nos municípios”, adianta este último quadro do partido que diz não ver “os autarcas do PS a darem pelouros ou a fazerem entendimentos de mandato com o Chega, enquanto que com outros partidos isso não será tema“.
Outro socialista dramatiza mesmo: “Ou somos pragmáticos e exploramos cisões no Chega”, forçando acordos que possam ditar rompimentos no partido, “ou as câmaras ficam ingovernáveis e vêm as intercalares onde o Chega ganha com maioria”. “Vai haver uma profusão sem precedentes de eleições intercalares”, antevê este mesmo socialista que avisa: “Quem tem mais votos e capitais de distrito ainda vale para ganhar as eleições, mas a noite eleitoral pode não se fechar a 12 de outubro, pode demorar dois anos” — numa referência à curta durabilidade de executivos de governação praticamente bloqueada.
Na prática, o que estes socialistas apontam como situações “complexas” são casos como o de Elvas, onde se aponta um empate entre três forças: PS, o movimento cívico independente (saído de uma cisão do PS) e o Chega. Com dois vereadores para cada um e o que sobra para o PSD, quem ficar à frente ficará pressionado a entender-se: e os socialistas estão divididos à partida. Mais acima do território, em Castelo Branco, onde PS e PSD são rivais há décadas, vão entender-se agora para bloquear o Chega?
“No sistema pluripartidário é difícil governar órgãos executivos com três forças com peso eleitoral semelhante”, nota a mesma fonte que aponta à proposta do PS para alterar a lei eleitoral autárquica. A ideia é permitir que os executivos camarários sejam compostos apenas pela força mais votada, eliminando a presença de vereadores da oposição no executivo das câmaras — a fonte da ingovernabilidade que teme.
Mas esse é um assunto que, mesmo vingando (e precisa de uma maioria de dois terços para passar no Parlamento), já não virá a tempo de resolver o problema do partido para o mandato que sair destas autárquicas — em que o factor-Chega introduziu um nervosismo adicional.
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