Nesta terça-feira (23) Lúcia Telles, neta e curadora da obra de Lygia Fagundes Telles, participou de encontro com as leitoras da comunidade Todas sobre o livro “As Meninas”, publicado em 1973. A obra tem como pano de fundo a ditadura militar no Brasil e se situa no ano de 1969, dias após o sequestro do embaixador dos Estados Unidos, Charles Burke Elbrick, em 4 de setembro daquele ano.

Lúcia conta ter trabalhado com a avó por longo período e diz que desde criança as protagonistas deste livro foram presentes em sua vida. Foi apenas na adolescência que descobriu que Lorena, Ana Clara e Lia não se tratavam de pessoas específicas, mas de personagens criados pela avó. “São as netas ocultas”, comenta Margarida Gorecki, outra neta de Lygia presente no encontro.

Ambas colaboraram com o debate acerca de pistas sem respostas deixadas por Lygia nessa e em outras obras: “Ela odiava quando compravam os direitos de adaptação dos livros e propunham soluções para mistérios que havia deixado em aberto”, diz Lúcia. Para ela, a autora sabia que os mistérios eram a parte mais interessante, algo endossado pelas participantes ao longo do debate: os fins de suas histórias, abertos a interpretações, parecem guiar o desejo da leitura.

Se questionada sobre o que aconteceu com determinada pessoa ou situação de seus livros, Lygia não opinava, diz a curadora. “É um chamado para que o leitor entre na obra e faça essa observação.”

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O título, agora na lista de leituras obrigatórias da Fuvest, também levou estudantes à reunião virtual. A estudante Camilla Proença cita o incômodo inicial com a falta de linearidade temporal da história. Além disso, a polifonia narrativa [a narração do livro transita entre Lorena, Lia, Ana Clara e um quarto narrador onisciente] marca confusão experienciada quase que de forma unânime pelas leitoras. “São três meninas muito diferentes, mas elas têm uma vida que se entrelaça e se mistura no discurso”, diz Lúcia.

O enfrentamento à censura também chama a atenção. Em um trecho do livro há um relato detalhado da tortura de um militante; o livro foi publicado logo após o AI-5 entrar em vigor. Lúcia conta que foi o companheiro de Lygia, o cineasta Paulo Emílio Salles Gomes, que trouxe um panfleto para casa com a descrição do que acontecia nos porões do DOI-Codi, órgão de repressão da ditadura militar, e insistiu para que fosse incluído no livro. Eles achavam que o trecho não passaria pela censura, mas, segundo Lúcia, Paulo teria dito que “o censor achou o livro chato e não chegou nessa parte.”

“É um livro incômodo porque trata de questões difíceis, como tortura, vício, abusos, entre outros, mas também tem a marca da autora nessa narrativa não linear”, diz Lúcia. A percepção das leituras é que, com as histórias de Lorena, a burguesa, Lia, a militante, e Ana Clara, a viciada, Lygia busca representar o que é ser mulher no Brasil. “Representam também a trajetória dela como escritora”, diz Lúcia. “Ela costumava dizer que tudo que escrevia tem a ver com o que viveu e com as pessoas que amava.”

De acordo com Lúcia, a avó chegou a se perguntar se tinha uma vida mais excêntrica que outros por escrever personagens que sofriam com questões de saúde mental, doenças e flertavam com a loucura. “No fim todos nós temos essas coisas nas nossas vidas”, diz.

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