Terça-feira, ao final do dia, o átrio do Tivoli Avenida da Liberdade, em Lisboa, está cheio de clientes que se estendem pelos sofás. Num dos lados, junto ao bar, há um andaime ainda montado, mas o trabalho de Jorge Feijão está já à vista de todos e distancia-se em muito dos sóis de Ana Trancoso, num elegante móbil que continua suspenso sobre o espaço e recebe a luz da enorme clarabóia. É o minimalismo da artista lisboeta, que estudou arquitectura de interiores, em contraposição com o elogio do artista das Caldas da Rainha ao pintor renascentista Pietro Perugino (1446-1523). Na quarta, a presença de Ana Trancoso está apenas na peça na entrada do hotel e, ao final da tarde, ouviu-se música no átrio, a Lux Aeterna, do compositor húngaro György Ligeti (1923-2006), para assinalar a presença do enorme painel que estará exposto até ao final de Novembro.

Aos jornalistas, Jorge Feijão conta que depois do convite e de vir a Lisboa visitar o hotel, começou a pensar que gostaria de ocupar o espaço com três trabalhos colossais. As figuras de grandes dimensões interessam-lhe. Entretanto, teve um sonho. E “foi muito curioso”, porque foi um sonho com “três entidades extraterrestres. Iguais. Com uma espécie de túnica negra, dispostos em planta num triângulo equilátero”, descreve. Estavam a olhar para baixo, com um olhar severo, continua. “Todos com a mesma expressão. Mas percebia-se claramente que cada um deles tinha uma função diferente e estavam a transmitir uma mensagem de urgência e de protecção.”

Quando acordou, o artista interpretou que aquelas entidades eram três arcanjos. “Nem eu sabia que, por exemplo, a figura do arcanjo Miguel, em particular, é uma entidade, uma representação, que surge nas três religiões monoteístas [judaísmo, cristianismo e islamismo]. Não sabia nada disto”, confessa. Inicialmente, pensou fazer três arcanjos, Miguel, Gabriel e Rafael. “Arregacei as mangas e comecei pelo Miguel”, continua. Mas cedo percebeu que um ano era insuficiente para essa empreitada e ficou-se pelo primeiro. Começou por investigar e chegou ao Renascimento, altura em que os arcanjos são tão representados na arte e decidiu fazer uma “citação”. Não é uma cópia de uma obra de Perugino, políptico que se encontra na National Gallery, em Londres, mas uma “citação”, explica.

Em termos práticos, o desenho e as cores são exactamente as mesmas da obra de Perugio, mas a dimensão é “colossal”, são oito metros de altura e três de largura. E se o renascentista pintou um óleo sobre madeira numa dimensão que ronda um metro de altura por cerca de 60 centímetros de largura, o artista das Caldas da Rainha — onde estudou e deu aulas na Escola Superior de Artes e Design — optou por folhas de papel A4 pintadas a pastel. Folha atrás de folha, nem todas limpas, saídas de um maço imaculado, mas muitas recicladas, nas quais se consegue ver o texto ou o desenho que tinham anteriormente, algumas têm até furos, daqueles para as guardar em dossiers. Ao todo são 352 folhas, todas coladas, umas às outras, com fita-cola atrás.




Pormenor do trabalho de Jorge Feijão
Nuno Sousa

De longe, quase parecem azulejos. Não são, são folhas “frágeis” e não foi fácil a montagem, reconhece o artista que observa com atenção quem se aproxima da mesma e até interrompe o raciocínio ao perceber que os curiosos se aproximam demasiado. “Foi uma logística complicada”, e sugere que se ponha uma baia a toda à volta, não apenas à frente, como está. O arcanjo olha do alto para a sala e Jorge Feijão espera que a mensagem passe. Qual? “Ao construir isto, à medida que fui lendo, senti mesmo que isto era uma resposta a uma emergência, a uma urgência qualquer…”, responde. No catálogo, a resposta é mais peremptória: “Gostaria que as pessoas estivessem de coração aberto para poder receber este desenho e a sua profunda mensagem invocativa, que eu acredito ter o poder de revigorar a alma e irradiar o amor absolutamente imperioso neste momento crucial da sobrevivência humana.”

Jorge Feijão sublinha ainda a importância da música. Na inauguração ouviu-se Lux Aeterna de György ​Ligeti. São dez minutos, 32 vozes, a capella — o Ensemble MPMP, com direcção de Clara Alcobia Coelho. “Um desenho nunca é só um desenho. Ele está sempre a convocar qualquer coisa. Tem uma energia própria. É impossível ser de outra maneira”, acrescenta o artista que não imagina outra banda sonora para o seu Arcanjo Miguel. Por isso, o título da obra é “O sonho de György”.​

Com esta instalação, o Tivoli Avenida da Liberdade prossegue a sua programação de mostras temporárias, inseridas no projecto Tivoli Art Collection que, entre 2011 e 2016 levou a cabo mais de 14 exposições com nomes reconhecidos da arte contemporânea. O projecto regressou em Outubro de 2022, com Márcio Vilela; um ano depois as tapeçarias da artista sul-africana Esther Mahiangu encheram o lobby, seguida de AkaCorleone. Em 2024, foi a vez de Nathan Kunigami, seguiu-se uma exposição com a curadoria de Felipa Almeida — responsável também pelas peças actualmente expostas na Cervejaria Liberdade e que podem ser compradas —; depois foi a vez de Ana Trancoso e de Bela Silva.