Majd Alshaghnobi, 15 anos (à esquerda na foto): estilhaços israelitas rasgaram-lhe o rosto. Esta é a história dele – mas não só
“Fui colocado na morgue”: adolescente retirado de Gaza para tratamento médico oferece um vislumbre dos horrores da guerra
por Christina Macfarlane, Sana Noor Haq e Muhammad Darwish, CNN
Inicialmente, os profissionais de saúde pensaram que Majd Alshaghnobi tinha morrido.
Estava à espera para receber farinha, como tantas outras crianças no norte de Gaza, quando estilhaços israelitas lhe rasgaram o rosto na rotunda do Kuwait, em fevereiro de 2024, provocando-lhe uma lesão por explosão na mandíbula e parte inferior da boca.
“Alguém arrastou-me e levou-me para um local seguro”, conta o rapaz de 15 anos à CNN. “Fui colocado no frigorífico da morgue porque pensaram que eu estava morto. Mas depois mexi a mão e alertei-os para o facto de estar vivo.”
Médicos palestinianos levaram-no rapidamente antes de coserem os ferimentos numa cozinha, por não haver salas de operações suficientes no Hospital Baptista Al-Ahli, na Cidade de Gaza – uma cena tensa de triagem impossível e improvisação médica repetida em toda a Faixa.
Depois disso, Majd percorreu sozinho bairros destruídos e postos de controlo militares, antes de se reunir com a mãe na cidade de Khan Younis, no sul.
“Foi difícil,” recorda Majd. “Estava muito assustado porque os israelitas estavam lá.”
Em julho, Majd Alshaghnobi tornou-se a terceira criança de Gaza a entrar no Reino Unido – teve a ajuda da ONG Project Pure Hope, com o apoio da organização sem fins lucrativos Gaza Kinder Relief. Cinco meses antes, Majd tinha saído do enclave pelo Egito com a mãe, Islam Felfel; com o irmão mais novo, Nader, de 10 anos; com a irmã, Rahaf, de 7, durante um cessar-fogo. O governo britânico não financiou a retirada de Majd Alshaghnobi nem o tratamento.
Na terça-feira, Majd foi submetido a uma cirurgia de reconstrução facial no Hospital Great Ormond Street, em Londres, dias depois de o governo britânico ter anunciado um novo programa para facilitar a chegada segura de crianças gravemente doentes de Gaza – com o primeiro grupo a entrar no Reino Unido em meados de setembro.
Majd, um rapaz palestiniano de 15 anos, fotografado no Hospital Great Ormond Street, em Londres, a 23 de setembro, tornou-se terça-feira a primeira criança de Gaza a receber cirurgia no Reino Unido foto Will Bonnett
Profissionais humanitários e de saúde dizem que é preciso mais para ajudar – e alertam que a provação de Majd oferece um raro vislumbre dos horrores da campanha israelita para as crianças em Gaza. Mais de 50.000 crianças foram mortas ou feridas, segundo as Nações Unidas. Gaza tem o maior número de crianças amputadas per capita no mundo, disse Philippe Lazzarini, chefe da agência da ONU para os refugiados palestinianos, na quarta-feira.
Quase dois anos de bombardeamentos e restrições nas fronteiras, após os ataques liderados pelo Hamas a 7 de outubro de 2023, destruíram o sistema de saúde e estrangularam o acesso dos pacientes a cuidados. Mais de 700 pessoas morreram à espera de serem retiradas de Gaza, incluindo quase 140 crianças, afirmou a Organização Mundial da Saúde (OMS), a 10 de setembro.
Agora, e à medida que mais potências ocidentais avançam para reconhecer o Estado palestiniano e cresce a condenação internacional da ofensiva israelita, defensores dos direitos humanos exigem que os aliados atuem para retirar o apoio militar a Israel e enfrentem o cerco humanitário devastador, incluindo através de retiradas de pessoas de Gaza.
Entre outubro de 2023 e julho deste ano, 7.642 pacientes, incluindo 5.303 crianças, foram retirados do enclave, de acordo com a ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF). O Reino Unido recebeu 0,03% desses pacientes, informou a MSF.
“Tantas crianças perderam membros, perderam a capacidade de comer”, disse segunda-feira à CNN Omar Din, cofundador do Project Pure Hope. “Com toda a boa vontade do mundo, devíamos fazer mais,” afirmou Din. “Há um reconhecimento de que estas são pessoas que têm um direito inalienável de ser tratadas como qualquer outro ser humano, de receber cuidados de saúde.”
‘Uma gota no oceano’
Após mais de 700 dias de guerra em Gaza, pais, médicos e agências da ONU dizem que as crianças palestinianas enfrentam fome crescente, terror, derramamento de sangue e bombardeamentos pesados. Algumas “desejam morrer para se juntarem aos pais no céu”, segundo a MSF.
Apesar de Majd estar a receber enxertos e cirurgia reconstrutiva especializada que lhe darão melhor uso da boca, os cuidados que recebe representam “uma gota no oceano” comparado com a escala da necessidade, segundo Owase Jeelani, neurocirurgião pediátrico no Hospital Great Ormond Street. “Esperamos que, se e quando conseguirmos dar-lhe o resultado que esperamos, isso abra caminho para que mais crianças possam vir”, disse Jeelani à CNN.
Palestinianos reúnem-se à volta do hospital Al-Shifa, gravemente danificado, na Cidade de Gaza, a 1 de abril de 2024 foto Osama Rabii/Anadolu/Getty Images
Israel visou 38 hospitais em Gaza desde 7 de outubro de 2023, de acordo com Munir Al-Bursh, diretor-geral do Ministério da Saúde no enclave. Pelo menos 1.723 profissionais de saúde foram mortos, afirmou na terça-feira. Israel tem afirmado, há anos, que combatentes do Hamas refugiam-se em hospitais e noutros locais civis para evitar ataques israelitas. O Hamas rejeitou repetidamente essas alegações.
Um inquérito independente da ONU concluiu na semana passada que Israel cometeu genocídio contra os palestinianos em Gaza através de uma campanha multifacetada – incluindo o alvo a crianças e ao sistema de saúde. Israel negou firmemente as acusações de genocídio.
Os corpos de palestinianos mortos num ataque israelita no campo de refugiados de Al-Shati, na Cidade de Gaza, são transportados na terça-feira. A invasão militar obrigou dezenas de milhares de pessoas a fugir foto Khames Alrefi/Anadolu/Getty Images
Hospitais em Gaza simbolizam “a própria vida perante o cerco e a guerra”, disse na segunda-feira à CNN Eyad Amawi, trabalhador humanitário palestiniano deslocado em Deir Al-Balah, no centro de Gaza. “Destruir estes faróis de esperança tem como objetivo, antes de mais, quebrar a vontade da sociedade, empurrar as pessoas para o desespero e roubar-lhes a capacidade de resistir.”
Irmãos deixados para trás em Gaza
Imagens gravadas por uma equipa da CNN no Hospital Great Ormond Street antes da cirurgia mostram Majd deitado num pequeno quarto a usar um pijama cor de creme com o logótipo do videojogo “Minecraft”. Os olhos castanhos movem-se de um lado para o outro da sala, um leve sorriso espreita por detrás de uma máscara cirúrgica azul.
“O meu desejo é que Gaza volte a ser o que era, que todos se possam reunir”, disse à CNN. “Gostaria de ser como todas as outras crianças.”
O zumbido dos aparelhos médicos em Londres contrasta com o ruído ensurdecedor dos drones israelitas no norte de Gaza – onde os seus dois irmãos mais novos, Muhammad, de 14 anos, e Yusuf, de 12, estão deslocados.
Palestinianos lamentam uma criança morta por um ataque aéreo israelita, na morgue do Hospital Al-Shifa, na Cidade de Gaza, a 12 de julho. Mais de 50.000 crianças foram mortas ou feridas, segundo a ONU foto Jehad Alshrafi/AP
“Se soubesse que a guerra iria recomeçar, não os teria deixado para trás”, disse Felfel, a mãe, à CNN na segunda-feira. “Quando falo com eles, dizem-me ‘deixaste-nos aqui, levaste o rapaz que amas e deixaste-nos e podemos morrer a qualquer momento’.”
A atual ofensiva militar israelita na Cidade de Gaza – que o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu diz visar aquilo a que chama “últimos bastiões” do Hamas – pôs três hospitais fora de serviço, escreveu Al-Bursh no X, na terça-feira. A CNN contactou as Forças de Defesa de Israel para obter uma reação. Mais de 320.000 pessoas foram forçadas a deslocar-se para sul a partir da cidade, a maior de Gaza, desde meados de agosto, segundo a ONU.
Felfel diz à CNN que os dois filhos, que estão com o pai, não conseguem pagar os 2.500 euros necessários para se deslocarem de norte para sul. “A casa deles desapareceu. Os locais seguros desapareceram. Estão agora na rua. Estar longe deles está a despedaçar-me o coração.”