Num mundo em convulsão, onde a ordem internacional se fragmenta e a democracia se fragiliza, Portugal e Espanha podem ter nas mãos um papel importante

Portugal e Espanha podem estar diante de uma oportunidade histórica: juntos, têm condições para se afirmarem no tabuleiro global num momento em que a Europa atravessa fragilidades e incertezas. Esta foi a ideia que marcou o 4.º Encontro Luso-Espanhol Desafios do Século XXI, onde o diplomata espanhol Jorge Dezcallar, antigo diretor do Centro Nacional de Inteligência, e o presidente da Câmara de Cascais, Carlos Carreiras, refletiram sobre os desafios de governança e da política em tempos de convulsão internacional.

Para o autarca de Cascais, a Península Ibérica pode ser muito mais do que a periferia da Europa. Se Portugal e Espanha souberem acreditar e agir em conjunto, podem transformar-se numa superpotência capaz de se impor num mundo que caminha, no seu ponto de vista, para uma bipolaridade entre Estados Unidos e China.

O caminho, defendeu, passa por articular uma comunidade afro-ibero-latino-americana, que tem no Brasil e em Angola polos estratégicos e que assenta numa matriz cultural, linguística e histórica comum. “Temos massa crítica para nos afirmarmos. Fomos povos que abriram a primeira globalização e podemos agora ser protagonistas de uma nova glocalização”, afirmou.

Jorge Dezcallar não escondeu que a situação internacional o “preocupa”. O diplomata descreveu o presente como um momento único na história da humanidade, marcado pela coincidência de várias revoluções que avançam em simultâneo. Entre elas, a automação e a robotização que, considera, geram ansiedade e insegurança social, porque “ameaçam destruir empregos mais rapidamente do que criam novas oportunidades”.

A revolução demográfica, por sua vez, atingiu números tão impressionantes que, considera, mudam por completo o olhar sobre os recursos do planeta: “Quem tem hoje 42 anos viu a população mundial duplicar no espaço da sua vida; quem tem 75 anos assistiu a um triplicar. Nunca nada semelhante aconteceu, e isso significa uma pressão gigantesca sobre recursos limitados como a água, a energia ou a alimentação.” Já a globalização, que em tempos foi promessa de progresso e de abertura, tornou-se também uma rede de dependências que expõe vulnerabilidades.

Sobre tudo isto, paira o fim da ordem internacional de 1945, que, considera, está a ser corroída por três movimentos simultâneos: a contestação aberta da China e de aliados que “não aceitam mais as regras do jogo” estabelecidas no Ocidente; a rutura provocada por Donald Trump, que rompeu com a lógica do multilateralismo e “colocou a segurança nacional dos Estados Unidos acima de tudo”; e, finalmente, a fragilidade de França e Alemanha, que durante décadas foram o motor político e económico da União Europeia.

“Estamos no fim de uma ordem que nos deu oitenta anos de paz e bem-estar económico. Hoje seria impossível aprovar por consenso a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, por exemplo”, observou. Para o diplomata, a Europa cometeu três grandes erros estratégicos  confiar a sua segurança aos Estados Unidos, a sua energia à Rússia e o seu comércio à China. “Nenhum se revelou fiável.”

Ao mesmo tempo, cresce no continente uma extrema-direita que, na opinião de Jorge Dezcallar, já não é marginal. “Em 1984 representava 4% dos votos nas eleições europeias; nas últimas europeias, saltou para 20%.” Esse crescimento é, na sua leitura, um sintoma da inquietação coletiva e do descrédito das instituições democráticas, cada vez mais vistas como “máquinas partidárias ao serviço de interesses próprios”, incapazes de responder às necessidades dos cidadãos. “A democracia está em decadência”, avisou.

O cenário que desenha é o de uma militarização do discurso político. Fala-se de aumentar a despesa em armamento, discute-se com fervor o regresso do serviço militar obrigatório, e a guerra volta a estar no centro das conversas, não como hipótese distante, mas como risco real. Neste contexto, a Europa, insiste, não pode continuar a confiar no guarda-chuva americano. “Temos de ser capazes de tomar nas nossas mãos o nosso próprio futuro. Temos de colocar o destino europeu nas nossas mãos.”

Se Jorge Dezcallar trouxe ao debate o peso da geopolítica e da história, Carlos Carreiras trouxe o olhar da governação local, sem negar a gravidade dos tempos, mas com a convicção de que é preciso cultivar esperança. “Um presidente de Câmara tem necessariamente de ser um otimista. O maior défice que temos neste momento é a utopia. Abandonámos o sonho”, afirmou.

O autarca de Cascais recordou que há cem anos o mundo atravessava um ciclo inquietantemente semelhante: pandemia, seguida de guerra. “Vivemos de novo essa fase. A diferença é que ainda não chegámos ao nosso 1945. Ainda não chegámos ao fim da guerra. Estamos nesta ponte, entre duas margens.”

Carlos Carreiras insiste ainda num ponto essencial: a democracia precisa de ser rejuvenescida e reinventada. Em Cascais, diz, a aposta em modelos de democracia participativa e colaborativa tem dado frutos, não apenas na aproximação entre cidadãos e governantes, mas também na resistência ao populismo. “Aqui os extremismos não têm prevalecido. E isso mostra que é possível redemocratizar a democracia.”

Para o autarca, o futuro da governança não passa pelos governos nacionais, cada vez mais condicionados por forças globais e mercados que escapam ao controlo dos Estados, mas sim pelos municípios. “Um primeiro-ministro já não manda. Um presidente de Câmara manda. É ao nível local que conseguimos ser consequentes.”

Jorge Dezcallar fez mais um aviso sombrio: “Estamos na época dos monstros. Não sabemos se voltaremos a ter instituições internacionais fortes. O futuro é uma incógnita.” No entanto, não deixou de sublinhar que Portugal e Espanha, apesar das diferenças, entendem-se bem e têm muito a ganhar se souberem agir em conjunto. “Partilhamos língua, valores civilizacionais e história. Temos de os defender porque acreditamos que são bons.”