O PAÍS DO MEIO || A EN2 amaina à entrada de Pedrógão Grande e as bermas ainda mostram o agosto chamuscado; Vila Facaia não ardeu desta vez. Faço o truque antigo e ligo ao padre Armando: não sabe o nome, sabe a história, uma senhora que perdeu o marido na Estrada da Morte. Encontro-a no fim da missa, chuva miúda no adro: chama-se Guilhermina, dá-me boleia de guarda-chuva até ao café. Compra um garoto clarinho, muito clarinho, para poder dormir, eu fico-me pelo café. Pede que falemos de frente porque o aparelho auditivo dela partiu-se e custa mais de três mil euros, de frente ela pode ler-me os lábios. Senta-se e, antes de qualquer pergunta, resolve a entrevista com uma frase só: eu preciso de conversar
esta é uma série de 14 reportagens de Tiago Palma: de Trás-os-Montes ao Algarve, o jornalista desce pela Estrada Nacional 2 e recolhe retratos íntimos de quem é destes lugares – veja AQUI as outras reportagens
Pedrógão Grande (CNN Autárquicas 2025) – Chegar a Vila Facaia é entrar numa dobra da serra onde a chuva, mesmo miúda, muda o timbre das coisas.
O som bate nas telhas e volta em surdina, como se o vale fosse uma concha a proteger quem ficou. Agosto fez-se ouvir aqui por perto — não como em 2017, mas o suficiente para deixar sinais: troncos tisnados a meio, a fuligem a trepar o pé dos eucaliptos, a erva nova a tentar furar o carvão. Vila Facaia, desta vez, escapou. O ar traz um cheiro de cinza molhada e outra coisa qualquer, húmus que recomeça. O país, esse, costuma esquecer-se depressa; a paisagem não.
Há um método antigo de repórter para não entrar às cegas numa aldeia: primeiro liga-se ao padre. Telefonei ao padre Armando, que reparte corpo e agenda por Vila Facaia e por Alvares, Arega, Campelo, Castanheira de Pera, Figueiró dos Vinhos, Graça e Pedrógão Grande. Está cá há pouco tempo, o suficiente para saber o essencial. “Há uma senhora que perdeu o marido na estrada.” Não sabia o nome, sabia a história. “Vai encontrá-la na missa de domingo.”
Domingo veio com o céu baixo e a chuva miúda a lavar a calçada. Do adro via-se a aldeia reduzida ao que importa: telhados, vozes, passos. O sino, esse metrónomo antigo, regulava o tempo por dentro. Entrei e esperei.
A missa terminou e as vozes alongaram as últimas sílabas até ao teto branco, manchado pela humidade que a serra aceita como quem aceita um destino. Lá fora, o adro encheu-se de guarda-chuvas abertos como flores disciplinadas. No vaivém dos cumprimentos, nos beijos apressados, no “então até para a semana, se Deus quiser” que vale como contrato de boa vizinhança, encontrei o padre Armando já em retirada para outra paróquia. Apontou com o queixo. Eu segui o gesto.
Guilhermina estava a dois passos. Casaco de malha azul, saia azul, o cabelo puxado para trás com o rigor de quem aprendeu cedo que apresentar-se é também cuidar dos outros. Digo quem sou, de onde venho, ao que venho. Ela escuta inteiro e resolve tudo com uma frase que abre portões: “Eu preciso de conversar, o que me faz mais falta é conversar.” Abre o guarda-chuva castanho e dá-me boleia até ao café mais próximo — “para nos livrarmos desta água, que isto faz mal à gente”. Entramos numa sala curta que cheira a torradas, os vidros baços a pedirem a manga de um casaco. O dono levanta os olhos de uma chávena, reconhece o domingo no corpo de quem entra e volta ao gesto de polir o balcão.
Ela pede um garoto “clarinho, muito clarinho, que é para poder dormir”. Eu peço um café. Sentamo-nos de frente para a rua. O guarda-chuva pinga perto da porta, o sino ainda ecoa, e a conversa inaugura-se sem cerimonial. De quando em quando Guilhermina pede que eu fale um pouco mais alto ou que vire o rosto de frente – para que ela possa ler-me “os lábios” porque o aparelho auditivo dela partiu-se e “custa para mais de três mil euros”, “o Estado não comparticipa nada” e Guilhermina anda a tomar “uma medicação para ver se a audição melhora um bocadinho: “Eu tenho a impressão de que sim, que melhorou.” Fala com as mãos, às vezes amassa um guardanapo pequeno que guarda na manga, gesto antigo e discreto de quem organiza o que sente antes de entregar o que diz.
Tem 80 anos e assina-se com uma geografia: “Sou dos Campelos.” Nasceu aqui, foi para Lisboa com 14 — costura primeiro, fábrica depois, “um bocadinho de tudo” —, voltou 21 anos mais tarde, “por força da vida”. O ano era 1981, “o marido era da hotelaria, quis sossegar a cabeça”. Fizeram ali “uma casita”, ajardinaram o quotidiano, tiveram “os seus amiguitos”, viram-nos partir, “e nós para aqui já reformados”. Quando lhe peço a infância, a palavra que regressa não é miséria, é tom: “Pobre mas muito alegre.” Escola primária, barulheira de crianças, a sensação de que os dias, por mais curtos, chegavam para tudo. Gosta de cá estar, repete sem rebuço. O problema, hoje, não é de telhados nem de pão – é de gente. “Somos poucos e cada um tem a sua vida. O que me faz mais falta é conviver, uma palavra amiga. Por vezes não há.”
O relógio dos dias não tem heroísmos. Não acorda às 06:00 — “nunca me levantei a essa hora para ir trabalhar”. Pequeno-almoço, um salto à horta “só um bocadinho”, televisão a goles — “gosto de ver o programa da Cristina, mas não tenho paciência para estar ali muito tempo, ando fora e dentro, dentro e fora”. Ao primeiro plano de labaredas no telejornal, ainda o pivô não disse “fogo” e o comando já está na mão: corta-se o som, apaga-se o ecrã, fecha-se a porta à corrente de ar que ela conhece de cor. “Não consigo, não preciso.” Médico de família três vezes por semana — “o doutor Raul é como da família” —, multibanco, centro de dia que houve e fechou, atividades “para o concelho”, noutra freguesia. Falta qualquer coisa que traga as pessoas à mesma mesa. “É disso que eu precisava: atividades, conviver. Do que tenho mais falta é de convívio.”
Para voltar a 2017 é preciso ir devagar. Não por pudor, por respeito. Guilhermina acena com os olhos e traz a memória para a beira da mesa. “O fogo cantou todo o dia.” Não há metáfora, há som. Era o mês “de arranjar a igreja”, levavam flores, compunham panos, e o marido passara o dia “a cantar no coro”. À tarde “ficou tudo escuro de repente”. Uma vizinha aflita, um carro vindo de Mosteiro, “a senhora vinha a gritar que o fogo já passou para cá”. Houve quem perguntasse se tinham carro e quem oferecesse levá-los “lá para cima”. O fogão estava aceso, preparavam o jantar. Ele disse a frase com calma perigosa: “Tu estás sempre com medo do fogo. O fogo nunca cá chega.” Fechou o gás. Foram ver a mangueira lá fora. “Eu disse ‘pega no carro e foge’.” Foi a última frase inteira que lhe disse. Ele entrou para buscar a carteira. Ela abriu a torneira. Não o viu sair. “Quando isto acalmar, ele vem”, pensou. Não veio.
O depois foi um corredor de paredes altas. Passou a tarde a convencer-se de que, quando aquilo acalmasse, ele ia voltar pelo mesmo caminho, o motor a anunciar-se antes da curva. À noite, nada. De madrugada, sentou-se à mesa, o telefone ao lado, começou a ligar para os hospitais às seis, só lhe atenderam às oito, repetiu o nome devagar para que a mulher do outro lado percebesse — “Fernando Freire dos Santos” —, esperou em silêncio. A resposta repetiu-se: não deu entrada. Pediu a um bombeiro e a um vizinho que a viessem acordar se houvesse notícias. Ao segundo dia chegou a hipótese de ele estar em Avelar. Quis acreditar, agarrou-se a essa hipótese com as duas mãos. O sobrinho, ao telefone, foi seco e honesto: já ligara “para todo o lado, até para Espanha”, o tio não estava em lado nenhum. Foi então que lhe saiu a frase que ninguém quer dizer de si para si, “se não está nos vivos tem de estar nos mortos”. Levaram-na para a Misericórdia — “ainda bem que me levaram, não sei o que seria” —, deram-lhe horas quando ela já não tinha horas, comprimidos para o corpo obedecer quando a cabeça não obedecia. Só ao quinto dia a Polícia Judiciária apareceu, confirmou o que o corpo já sabia. “A Judiciária falou comigo à quarta, o funeral foi à sexta, eu nem tenho ideia de o pôr lá para baixo.” A sala cheirava ao que a morte cheira quando chega queimada. “Não se podia estar ao pé do caixão.”
Depois veio o inventário do porquê. Mais tarde, alinhou trajetos: ele foi visto “calmo” — “disseram isso, eu não acredito” —, parou num lugar onde nunca ia, falou com uma senhora, seguiu para a EN236-1, virou para Figueiró — “nós nunca gostámos de ir para a Castanheira” — e ficou quase no cruzamento que desce para casa. O relatório dizia que um carro bateu atrás e o empurrou para a berma. Quando a televisão encheu o ecrã com a fila de carros calcinados, ela reconheceu. “O meu carro estava à frente daquela carrinha branca.”
A 17 de junho de 2017 morreram 47 pessoas na EN236-1, 30 presas nos carros, e ao todo foram 66 vidas em Pedrógão. Os números são um chão sem conforto. Guilhermina fala sobre o que ficou: a fé — “eu sento-me no carro e digo ‘Senhor, ajuda-me, guarda-me, acompanha-me’” —; o doutor Raul, “quase família”; psicólogos que entraram em casa e arrumaram gavetas visíveis e invisíveis; a carta ao Presidente, carta que ela escreveu e rasgou
— O que é que dizia na carta?
— Eu, nessa altura, falei mais com o coração do que com a boca. Mas é que eu não a mandei…
— Fale.
— Foi sobre a perda, sobre… olhe, já não me lembro assim muito bem, mas sei que foi sobre a perda, sobre o que se passou. Porque nós não tivemos… nós não tivemos bombeiros. E nós também temos de ser realistas: ninguém é capaz de fazer frente àquilo.
foi a carta que ela escreveu e rasgou. “Eu não queria dinheiro nenhum, o que eu perdi ninguém pode dar. Precisava era de uma palavra.” O tempo levou a raiva e deixou uma serenidade triste. “Se fosse hoje, talvez nem dissesse nada.” Não acredita em promessas vindas de longe, acredita em vizinhos que tocam à porta. “Uma palavra basta.”
Houve festas “para angariar dinheiro” no dia em que se cumpriram três meses. “Eu não queria festa nenhuma.” Não é contra o gesto; é a favor da proporção. “Ficámos muito a falar de dinheiros”, uns receberam, outros não, “uns mais do que outros”, e as aldeias, que se valiam por dizerem tudo, calaram-se um bocado, medo de dizer demasiado. “As pessoas ficaram mais fechadas.”
A sala do café encolhe quando a palavra “culpa” entra. “Culpei-me.” Ouviu médicos, ouviu a Judiciária — “ele ia morrer na mesma” —, e foi empurrando a culpa para fora da mesa. Não desapareceu, “ficou mais baixinha”. Houve noites em que ouviu o marido chorar. Corrige: “Todas as noites.” Agora ouve “muito levezinho”, como um eco. Disseram-lhe: “Se estiver bem, ele também está.” Teve de aprender a esquecer “um bocadinho”. E houve um tempo em que a solidão pesou tanto que o pensamento correu para o sítio errado. “Nunca pensei nisso, mas parecia capaz… ainda bem que não fui.” Pousa as mãos, uma sobre a outra, respira devagar. Depois arruma a frase: “Eu agarrei-me às memórias boas. Nós éramos felizes. Cada um com o seu feitio, claro, mas éramos amigos.”
Quando fala sobre o carro, a tristeza muda de textura. Passou um ano até comprar outro. No dia em que o amigo telefonou — “está cá” —, as pernas tremeram. “O que é que eu vou fazer?” O amigo simplificou: “Compras o carro e, se não der, vendes.” Deu. Tirou a carta aos 56, hoje conduz a Pedrógão e a Figueiró, estaciona longe — “gosto de espaço” —, reza a oração curta antes de rodar a chave. “Eu vou devagar”, ri-se. “Eu gosto de ir devagar.” Na conversa sobre estradas entra a frase que feriu a geografia: “Estrada da Morte”. É o nome que ficou, o nome que dói. “Eu procuro não ir lá”, confessa. “Quando vou, choro.” Gostava que Pedrógão não fosse só isto nas notícias. “Era melhor falarem das coisas boas também.”
Lá fora, a tarde continua húmida. Agosto passou outra vez por perto; vê-se nas bermas, na fuligem que sobe no tronco dos eucaliptos, na erva entre o ferrugem e o verde. Vila Facaia escapou. “Eu não sou capaz de aguentar outro”, diz com a verdade de quem sabe. Fala de limpezas que se exigem e não se fazem, de gente sem idade para segurar ferramentas, de gente sem dinheiro para pagar a quem limpe e de um problema que começa antes do dinheiro: “Às vezes não temos a quem.” Não quer ganhar nenhuma discussão, quer resolver a parte que lhe toca. “Eu não preciso de nada. Preciso de uma palavra amiga.”
O nome do médico — “doutor Raul” — aparece a intervalos regulares, como quem chama família. “Nós ficámos quase muito de família.” O médico que ouve, o psicólogo que entra, as pessoas “mais habilitadas” que ajudam a colocar etiquetas nas gavetas da cabeça. Nem todas as portas abriram bem. Foi a casa de uma amiga à procura de uma palavra. “Eu fui a chorar.” Ouviu dela: “Tu estás assim?” “Saí triste e ainda fiquei pior.” Há amizades que não têm o dom da frase certa. “As pessoas também não querem ter a sua vida em nós. E eu também entendo isso.” Fica, no entanto, o grito de uma tarde inteira: “Ninguém tem tempo. Ai, ninguém tem tempo.”
O tempo esticou-se. De 2017 a hoje coube tudo o que cabe quando se aprende a continuar. “Eu nunca pensei ser capaz de levantar os olhos do chão.” Pede a Deus — “o que puder fazer bem” — e vigia a cabeça como quem vigia o lume. Não pensa no futuro – não por desistência, fá-lo por cálculo. “Enquanto eu puder não saio da minha casa.” Um convite para a Bélgica, “dois meses”, arrumado com a delicadeza de quem sabe o peso de sair. “Não é agora.” A casa, a horta, o pequeno retrato do marido que ajeita antes de sair, o doutor que atende “como família”, a televisão vista às prestações, o carro que anda devagar, a oração breve que cabe numa única respiração. O mundo cabível.
Há um lugar em Pedrógão onde a memória se tornou pedra. Um memorial de pedra escura, os nomes talhados, a chuva a escorrer como caligrafia. Guilhermina acha que “está mal feito” terem posto “as pessoas lá de cima ali”. Não é ressentimento, é medida do luto. Foi lá “sozinha” a primeira vez, demorou, chorou. Hoje evita. “Procuro não ir porque mexe.” Quando tem de passar olha de soslaio ou não olha de todo. E depois há dias em que é preciso dizer bom dia aos mortos para se poder seguir junto dos vivos.
As mãos de Guilhermina desenham no ar a topografia da estrada. Mosteiro, Moleiros, a curva onde se vira para casa, a reta onde o carro foi empurrado para a berma. As mãos também fixam os termos da perda. “Eu sou a pessoa mais pobre que há.” Não fala de dinheiro. “Eu não tenho ninguém.” Outra vez: “Eu não tenho ninguém.” Tem sobrinhos, têm vida, têm distâncias. Fica a palavra que, na boca dela, não é queixa – é facto: “Solidão.” E a resposta que encontrou: “Eu só confio Naquele lá de cima.”
No dia em que se cumpriram três meses daquele dia de 2017 organizaram uma festa “à janta”, “para angariar dinheiro”. “Eu não queria festa nenhuma.” Havia listas, distribuição, sobra de ruído. “O dinheiro foi guardado para os amigos.” Não recebeu nada — “quando lá cheguei já não havia”. Não é esse o inventário que lhe interessa. “O que eu perdi ninguém pode dar.” O que queria — repete — era “uma palavra”. Há um país que gosta de se organizar ao redor de verbas, contas certas, relatórios que aliviam consciências. Este pedaço do país pede mesas.
No café de Vila Facaia, a palavra “mesa” ganha literalidade. A mesa onde se pousam as mãos e o guardanapo amassado. A mesa onde se escreveu uma carta e se decidiu rasgá-la. A mesa de cabeceira onde se alinham os comprimidos que empurram o sono. A mesa da cozinha onde a televisão se vê aos pedaços. A mesa do carro, que é um altar mínimo: “Senhor, ajuda-me, guarda-me, acompanha-me.” A mesa da igreja, onde o coro cantou todo o dia neste dia.
Ela pede desculpa por me “ter prendido”. Quer pagar o garoto dela — “o meu garoto é comigo”. Eu pago o meu café. Rimo-nos da formalidade destas vitórias morais. Antes de sair, Guilhermina tira da mala um pente pequenino, passa-o devagar pelo cabelo. Lá fora, duas vizinhas observam, cochicham sem maldade. Guilhermina faz questão de me apresentar — “para que depois não andem para aí a falar mal”. Dar nome às pessoas é fazer-lhes casa.
Ficamos um pouco no adro, a fotografar de frente para a igreja, encostados ao muro, junto às flores de plástico que teimam o ano inteiro. Há uma paz breve na coreografia. Antes de se despedir, diz que “fez bem falar”, como se a conversa fosse um remédio que não cura – alivia. Despedimo-nos devagar, com a lentidão pactuada dos lugares onde ninguém tem pressa de ir longe.
Vejo-a entrar no carro e a baixar um segundo a cabeça. Sussurra a oração curta, liga o motor, arranca devagar. Tem de ir a Pedrógão comprar pão, leite, um saco de arroz — âncoras pequenas de quotidiano. Para lá chegar há de entrar na EN236-1. Há de passar ao lado do lago artificial que a estrada fez, espelho imóvel colado ao talude, e do memorial de pedra escura. Pode olhar de soslaio ou não olhar de todo. Entre os nomes, um que sabe de cor: Fernando Freire dos Santos.
Fico um pouco depois dela partir. Releio o caderno para não estragar as palavras dos outros. Anoto que a aldeia não precisa de discursos; precisa de mesas. Que a solidão envelhece mais depressa do que a idade. Que “pobre, mas muito alegre” é um hino melhor do que qualquer slogan. Que há dores que não passam — aprendem a andar ao nosso ritmo. Que uma mulher que se despede no adro vai pelo seu pé até ao carro, reza baixinho e segue, ensina sem levantar a voz a diferença entre sobreviver e continuar. E que Pedrógão Grande, no fim deste dia, não é só o nome de um incêndio. É o nome de uma conversa que salvou a tarde, de um guarda-chuva que protegeu dois e de uma estrada onde a chuva ténue escreve em cima da pedra o que nenhum de nós devia esquecer.
Volto à primeira frase que ela me deu, essa chave simples para abrir uma aldeia inteira: “Eu preciso de conversar.” Pensei se a conversa, aqui, se chamava outra coisa: pão, médico, transporte, uma tarde de cartas, um baile antigo, uma horta em conjunto, um autocarro que passa, uma carrinha que busca. Chame o que se quiser — no fim é isto: a presença que nos amarra ao chão. Em Vila Facaia, a palavra ainda é um abrigo. E Guilhermina, com o seu garoto clarinho e o seu pente de bolso, com a carta que rasgou e a oração que repete, lembra-nos o que o país tende a esquecer assim que a fuligem arrefece: que há lugares onde o essencial cabe inteiro numa mesa com duas chávenas, um guardanapo amassado e tempo para ouvir.
Se me pedissem uma linha para fechar, talvez não escolhesse uma frase — escolheria um gesto. O de Guilhermina a ajeitar o cabelo e a apresentar-me às vizinhas para que “depois não andem a falar mal”. No dicionário íntimo das aldeias, é assim que se cura um bocado o mundo: dá-se nome, dá-se rosto, dá-se tempo. O resto é estrada — e a coragem, sempre, de ir devagar.
O País do Meio não é um roteiro, pelo menos não turístico. Esta é uma série de 14 reportagens de Tiago Palma, para ler na CNN Portugal. De Trás-os-Montes ao Algarve, o jornalista desce a Estrada Nacional 2 e recolhe os retratos — íntimos, sabedores e naturais — de quem é das cidades, ou mais dos lugares, que a EN2 atravessa. Não são histórias de alcatrão, são histórias do caminho, do país real, ouvindo a voz de quem não é notícia — mas é um país, ou faz um país. Na antecâmara das Autárquicas de 2025, o pulso mede-se sem cartazes, sem promessas eleitorais, sem corta-fitas, sem política; o pulso mede-se como mediu Miguel Torga: “Cultivo-me pelos olhos e pelos pés, no alfabetismo íntimo das coisas”.
Esta é uma série de 14 reportagens de Tiago Palma, para ler na CNN Portugal. De Trás-os-Montes ao Algarve, o jornalista desce pela Estrada Nacional 2 e recolhe retratos íntimos de quem é destes lugares
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