“Aviso: Esta série é uma obra de ficção. Os eventos e personagens retratados são fictícios, ainda que possam ter sido parcialmente inspirados em factos reais. Qualquer semelhança com pessoas ou acontecimentos reais é meramente coincidência e não deve ser interpretada com uma representação da realidade.” Assim começam os 6 episódios de O Arquiteto (custa-me horrores não colocar o “c” a seguir ao e, chamem-me bota de elástico). E eu vou seguir o mesmo princípio e usar “alegadamentes” com fartura ao longo do texto, porque se os responsáveis se viram obrigados a usar este disclaimer, com a TVI e a Prime nas costas, que dirá esta humilde escriba.

Muito se escreveu… Aliás não foi assim tanto, porque no geral foram posts nas redes sociais. Mas houve uma relativa celeuma e indignação quando foi anunciada a produção de uma série inspirada num certo arquiteto, responsável por um certo centro comercial, que no final dos anos 80 esteve envolvido num muito mediático “escândalo sexual” (mais à frente esclarecerei o porquê das aspas) quando o VHS com alguns dos seus encontros sexuais extra-conjugais começou a correr de mão em mão. Porque, de facto, como seria de esperar numa sociedade patriarcal, carregadinha de culpa católica e com o bafio de uma ditadura de décadas ainda no ar, a dita figura tornou-se um herói para muito macho, enquanto as mulheres envolvidas sem consentimento não passavam de uma punchline. E muitos foram os que levantaram a voz para clamar que  a série serviria apenas para revitimizar as ditas mulheres, apelando a curiosidade mórbida, fazendo uso de uma nostalgia bacoca de um fenómeno da cultura popular assente em abuso. Eu não fui das que clamei, mas também temi que isso acontecesse. Concluo agora que fiz bem em calar-me à data. Dirão que é sempre um boa ideia e que o devia fazer mais vezes. Também devem achar que ganham alguma coisa com esse mau feitio.

Ao longo da série, assistimos ao desenrolar dos eventos que têm como pivot Tomé Serpa (Rui Melo), arquiteto em ascensão, professor universitário, prestes a inaugurar o maior e mais espampanante centro comercial do país, recém galardoado com o Prémio Valmor. Casado com Isabel (Paula Lobo Antunes) uma figura do jet set, pai de dois filhos: João (Tomás Andrade) estudante de quê adivinhem? Exato, arquitetura. E Leonor, uma adolescente insegura e introvertida, que é como quem diz uma adolescente. Tomé usa o seu atelier de forma polivalente: para criar as suas obras pós-modernas e coloridas, porque “antes excêntrico, que daltónico”; para atrair “patos bravos” que invistam nas suas obras megalómanas. E, last but not the least, como quarto de motel, com direito a captação vídeo, sem custo adicional e sem consentimento das protagonistas involuntárias.

[o trailer de “O Arquiteto”:]

Esta linha narrativa é intercalada com depoimentos recolhidos 5 anos depois, onde mulheres reclamam o poder de controlar a narrativa e contar a sua versão dos factos, com especial destaque para três delas. Carolina Barbosa (Teresa Tavares), atriz, é amante de Tomé, que lhe faz juras de amor e garante que se vai separar. Elsa, a secretária de longa data, trata da sua agenda, incluindo o vaivém de “clientes” femininas que povoam o atelier. Quando descobre a câmara escondida e tem direito a uma ante-estreia do filme que há-de ficar “viral”, confronta o chefe que a ouve com a maior das atenções e a despede com a maior das velocidades. Elsa é casada com um homem que faz um belo contraponto ao arquiteto: humilde, com uma infância marcada pela violência do pai contra a mãe, mas que respeita, apoia e trata de igual para igual a mulher. Poderão dizer que são os mínimos olímpicos, mas faziam falta exemplos destes na altura e, é com tristeza que o digo, continuam a fazer.

Daniela (Mikaela Lupu), recém-chegada de uma aldeia, vem trabalhar para a contabilidade no atelier de Tomé, deixa-se deslumbrar pelo paleio e carisma do chefe e acaba violada, na cena mais perturbadora da série. Quando Carolina descobre o hobbie abjeto do amante, alia-se a Elsa e, posteriormente, a Daniela para parar o senhor arquiteto que não pára de dizer que o centro comercial vai ser um estouro, mas estourou o orçamento do mesmo. Simultaneamente, debate-se com um processo de plágio, por “alegadamente” ter roubado um projeto a um colega do antigo escritório de arquitetura, onde trabalhou antes de se lançar a solo. It’s a shit show, tanto que a palavra mais repetida pelo dito cujo, a seguir a querida, é inferno. Sai uma comparação descabida, mas que na minha cabeça fez sentido? Não fazendo exatamente spoiler, mas lá perto, um pouco ao jeito de Inglourious Basterds, a história ganha um novo fim, trazendo alguma justiça à  História.