O PAÍS DO MEIO || Uma rádio de aldeia que, noite dentro, aguenta o mundo com um fio de voz. Um locutor que carrega nomes e respira pausas. Uma mulher que, ao portão azul da Codiceira, segura dois rádios como quem segura duas mãos. A “Linha da Amizade” não é milagre: é insistência, é riso tímido, é o país que se reconhece pelos apelidos e pelas melhoras desejadas em direto 

esta é uma série de 14 reportagens de Tiago Palma: de Trás-os-Montes ao Algarve, o jornalista desce pela Estrada Nacional 2 e recolhe retratos íntimos de quem é destes lugares – veja AQUI as outras reportagens

Sertã (CNN Autárquicas 2025) – A seta é pequena, quase escondida atrás da sombra da parreira. 

Rádio Condestável → 

Estrada lisa, passeio de pedra, um poste com placa velha a prometer bomba de gasolina a 300 metros. Ao fundo, um prédio sem ambição de fachada. Na janela, o círculo azul do logótipo reflete um carro estacionado. “Do centro de Portugal para o mundo: condestável, condestável, condestável…”, repete o separador quando a porta se fecha atrás de mim. Dentro, um corredor curto, cheiro a equipamento limpo, um ar condicionado que luta com o resto do verão. O estúdio respira com luzes a acender e a apagar. Mesa Axia iQ em vigília, sliders alinhados como vagões, teclado encostado ao rato, o micro vestido de espuma azul. Hugo Rafael pousa os auscultadores, confere a distância à cápsula, testa a voz quase sussurrada. Quarenta e cinco anos, fim de tarde com músicas novas, uma ponte pelos anos 80, duas horas a segurar miúdos de 16 e trintões com saudade. À noite, das 23 à uma, discos pedidos em ritmo de garagem: dedicatórias curtas, abraços lançados, nomes que trepam o vidro. E depois a pele mais funda da casa: a “Linha da Amizade”, herança de Maria do Rosário — que agora aparece aos domingos e no tempo das férias, memória viva que o estúdio ainda trata por “minha senhora”.

Hugo não se despacha; volta ao início para assentar o terreno: “Isto resultou de um ajuste na programação, um ajuste de horários. Eu tenho o programa de final da tarde, com um tipo de música completamente diferente.” O estúdio ouve-o pousar cada pedra. “Depois, das 20 às 21, tenho o programa de discos pedidos — um formato idêntico, as dedicatórias são mais curtas: essa é a grande diferença. Eu já tinha feito este programa nas férias da colega… Com a alteração, fiquei com ele. E, como em tudo, encaro como um desafio: tento sempre dar o melhor e fazer o melhor trabalho possível.” Fica dito: há um dia com duas velocidades e um coração só.

O relógio encosta às 23. Entra um spot como se fosse a mercearia da rua a abrir a porta:

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Acaba o anúncio, a noite limpa as migalhas de som. É segunda-feira. O número cai no ar com a firmeza de quem sabe o caminho: “274 800 021.” Hugo inclina o corpo, uma mão no slider, outra no botão de linha. Não há produção. É ele que atende, que segura, que entra em off quando percebe que a conversa pede recato, que volta a abrir quando o ouvido lhe diz que é tempo de partilhar.

Pede-me que repare no músculo da continuidade; alonga a frase para caberem as pessoas todas:

“É um trabalho de continuidade. Na rádio fazemos muita coisa — futebol, publicidade —, mas o programa da noite é mais específico. Há muitos ouvintes que àquela hora ligam sempre religiosamente o rádio. Podem estar a ver televisão mas baixam o som e ouvem com toda a atenção as dedicatórias, para escutar os nomes, saber se com os ouvintes que participam está tudo bem.” E o mapa abre-se no monitor de som. “Graças às novas tecnologias, temos muitos ouvintes que nos escutam no norte do país. A internet trouxe essa grande vantagem: podermos ser escutados em qualquer ponto do mundo, além dos muitos emigrantes que nos ouvem e acompanham.” É isto: fidelidade e alcance, a província a falar com o mapa-múndi.

A primeira chamada traz um país inteiro dentro da garganta. Alfredo Soares, voz macia de sala de jantar, alinhava destinatários como quem põe a mesa:

— Vamos começar este espaço com o Alfredo Soares. A dedicatória…

— Vou dedicar aqui às minhas princesas, vai para si e para toda a sua família, um bom regresso à sua casa, para os seus colegas aí e principalmente para a dona Maria Rosário. Agora vai para a dona Joaquina Serra, um beijinho para ela, para a filha e para as netas. Um beijinho para a dona Joaquina Dias, do Gavião. Para a dona Irmina, dos Marrazes. Um beijinho para a dona Georgina. E vai um abraço para o senhor António Manuel, da Marinha Grande. Ai, como é que se chama o irmão do Pinto da Silva? É o Fernando Silva. E olha, um beijinho para todas as senhoras, um abraço para todos os senhores. Quem esteja doente, rápidas melhoras; quem faça anos, feliz aniversário. E sejam todos felizes, é o que eu desejo.

A rádio regional tem esta gramática: os pronomes vestem-se de vizinhança, os nomes próprios atravessam concelhos como se fossem ruas do mesmo bairro, a repetição não cansa — confirma. O país aparece nisto: na mecânica amorosa de nomear, no gesto de espalhar parabéns como se fosse arroz.

Hugo baixa um pouco o tom e sublinha a ética do programa: “Isto não é um programa de queixumes nem de negatividade, é o oposto. Serve para levantar o ânimo. Muitas vezes, antes de irem para o ar, falamos em off e infelizmente há problemas de vários tipos — familiares, de saúde, com os próprios ou com familiares próximos, com filhos — com regularidade. Normalmente, esse tipo de conversa os ouvintes não abordam no ar, focam-se no essencial.” Ele respira, volta a cima.

“Temos ouvintes com diversos problemas, alguns com situações complicadas. O meu objetivo — e aquilo que tento transmitir de forma natural, porque vejo sempre as coisas pelo lado positivo — é nunca passar um sentimento negativo. Mesmo nas conversas, há inúmeros casos de pessoas que nos agradeceram a força que lhes damos. E temos familiares — filhos, por exemplo — que nos contactam para agradecer o que fizemos pelos país, sobretudo quando estiveram mais em baixo, com problemas de saúde. Aquela voz amiga, aquele contacto diário, naquele espaço, ajudou muito a ultrapassar.” O que dói guarda-se em off, ao ar vai o que amarra.

Logo depois cai a Georgina, do Tramagal. Ritmo um pouco mais alto, vida a acontecer no plural:

— Então o seu fim de semana, foi bom?

— Olha, o meu foi, junta da malta, como se costuma dizer. Não fui à minha filha doente, mas falei com ela. Já está um bocadinho melhor…

— E continuação de boas melhoras para todos os doentes em geral. Vamos daqui a pouco a receber e a recordar Lucas e Mateus. A dedicatória…

— Olhe, vai já para si. Com um beijinho e bom trabalho, bom regresso à sua casa, quando acabar o seu programa. Para todos os seus colegas também, que tenham uma santa noite. Para a senhora dona Maria do Rosário e família e netinhos e sobrinhas — que já tem uma da idade também da minha Soraia, ao fim do mês já faz 20 anos. Agora vai para esse senhor de Torres Vedras, para o senhor João, também para a família dele. Ele tem uma netinha pequenina — pequenina não — com cinco anos, a Beatriz. E eu também tenho uma Beatriz, só que a minha tem 17 anos. Mas também tenho uma netinha com cinco anos, que é a minha netinha mais nova. Agora vai para quem? Para a minha Sónia, que está aqui comigo. Vai para Manuel Ramos e família, de Vila Velha de Ródão. Um beijinho especial para o Carlitos. Vai também para a dona Rosinha, de Amarante, e família. Vai para o João Geirinhas, com um grande beijinho e as melhoras dele também. Vai os parabéns para o Manuel Mitra e esposa, que tivesse passado um dia feliz junto da esposa — que o filho e a nora e o netinho já cá não estão, estão em Geneve.

Há uma música sem partitura neste texto falado: uma cadência que se alimenta do detalhe, um puxar de fios que liga Tramagal a Torres Vedras, Ródão a Amarante, uma avó que acerta no diminutivo antes de corrigir, uma genealogia que vive no rádio como vivia dantes no adro. Quem está doente merece a mesma atenção que quem faz anos; quem tem netos diz o nome das crianças porque dizer o nome é fazer existir.

Hugo, ainda com o indicador no fader, abre uma janela para fora do estúdio: “Em FM chegamos a uma vasta zona. Temos muitos ouvintes no Alentejo, em toda a área de Castelo Branco, Tomar, Santarém; aqui no concelho e à volta: Pampilhosa, Figueiró dos Vinhos, Ferreira, Alvaiázere — através de três frequências —, muitos ouvintes. Diria que são pessoas muito dadas, diretas, sinceras, não são fechadas. Contam-nos facilmente muita coisa da vida. A esmagadora maioria tem uma energia especial, uma abertura que eu destacaria.” Diz o mapa e diz o carácter — duas mãos do mesmo corpo.

O Luciano vem de seguida, Torre das Vargens, voz de caminho devagar:

— Dedicatória? Ora, é já para si em primeiro lugar. Para todos os seus colegas. Para a senhora dona Maria do Rosário. Vai para todos os meus vizinhos da Torre das Vargens. Vai para o senhor Manuel Ramos, de Vila Velha de Rodão, que já cá chegou: um abraço amigo. Para a senhora Georgina, do Tramagal, que ainda há bocado a ouvi. Para a senhora Quitéria. Para o senhor Manuel do Coiço. Para a senhora Adília. E para o Hugo Rafael: bom programa e bom regresso a casa.

Quando o ritmo abranda, a noite respira. Entre chamadas, encaixa-se a vida pública do concelho como quem anuncia o boletim da paróquia:

— A edição das 23 horas de seguida com Luís Biscaia…

— Estão publicamente apresentados os candidatos autárquicos do Partido Socialista às eleições do próximo dia 12 de outubro, na Sertã. Esta apresentação pública foi feita na Alameda da Carvalha com o mote ‘Força para Avançar’…

Acaba o noticiário, volta a música, regressa a linha. “Alinhe nesta linha e fique na Linha da Amizade. Linha da Amizade: passa tudo por aqui.” Não é uma hipérbole vã: o “tudo” é esta soma de pequenas coisas que, juntas, dão país. Hugo multiplica braços invisíveis. Na mão esquerda, o ganho da chamada; na direita, a respiração do tema que entra a seguir; no ouvido, o mapa de quem está a falar. Sabe de cor que a Georgina tem a Soraia quase a fazer 20, que em Ródão vive um Manuel Ramos que às vezes chega mais tarde e por isso merece “um abraço amigo”, que há uma Quitéria de Benquerenças e um Manuel do Coiço prontos para receber recados. Sabe também quando empurrar uma piada leve para aliviar a dor, quando deixar o silêncio ocupar um segundo a mais. A regra é simples e leva tempo a aprender: não explorar a ferida, segurar a mão, chamar a vida para dentro do micro. “Para muitos, isto é como uma segunda família.”

A frase fica-me a olhar o vidro. Percebe-se nas costuras: nos telefonemas fora de hora, nos invernos em que a linha abranda porque do outro lado o sono veio mais cedo, nas noites em que o locutor abre o micro antes do combinado para dar vez a quem nunca consegue, no cuidado de não prometer lugar a quem ficou de fora — há sempre amanhã. A rádio demora e retribui. E ele fecha o arco com a sensação que o move: “Dá-me um contexto diferente do programa das 20 às 21, porque há um diálogo mais longo e um contacto noturno — é sobretudo à noite que as pessoas sentem mais a solidão, quando não têm contacto com mais ninguém. É a experiência de falar com quem trabalha à noite: seguranças, pessoal das autoestradas, das padarias. A rádio tem uma magia muito especial, difícil de pôr em palavras. Cada vez que se liga o microfone é uma sensação incrível. Um ouvinte liga da Pampilhosa; depois vamos para Santarém; depois para Beja, Évora, Amarante; depois Marinha Grande; a seguir Covilhã ou Alcaíns; e, logo depois, um sítio completamente diferente. É uma viagem pela geografia incrível do país — e estas rádios regionais permitem isso.” A viagem sem sair do lugar — o país inteiro pelo auricular.

Sai-se da rádio e a estrada chama pela Codiceira. Não é aldeia de postais, é quase estrada com casas, duas ou três sombras de árvores, um portão azul que brilha ao sol. A mulher que todos conhecem pela geografia do nome — “a Natália da Codiceira” — senta-se numa cadeira de plástico branco, dois rádios ao colo: o Grundig antigo, boombox robusto que carrega histórias no pó, e o portátil prateado da Hæger com a antena esticada. Sapatos azuis, blusa escura com flores brancas, mãos com serenidade de quem habituou os dias à rotina certa.

Tem 72 anos. Vive aqui desde os 23. Não dramatiza. “Passam dias e dias em que não acendo a televisão.” Quando liga, passa pelas notícias, “às vezes um Domingão, um jogo”. “A rádio fica sempre acesa.” Acorda “às cinco e tal”, som baixo; se adormecer adormeceu, senão fica com ela. Às sete, a voz feminina da manhã fecha as horas e as notícias chegam com a entoação de Luís Bi… bi… bis… Biscaia — o apelido tropeça-lhe, a familiaridade dispensa ortografia.

O quintal é uma floresta doméstica: alturas diferentes de verde, folhas carnudas, terracotas antigas, um cacto teimoso. Entre plantas, a companhia: dez gatos — dez —, um cão, galinhas, um melro numa gaiola pequena. “Quando lhes cheira a comida, aproximam-se.” Os nomes não chegam para todos, reconhece-os pelo passo.

Lisboa entrou cedo, “com 14, 15 anos”. Foi doméstica na Rua das Francesinhas, “passava junto à Renascença todos os dias”. Voltou e ficou. Três irmãos no princípio, os dois de outra mãe já partiram. A escola deixou-lhe um azedo curto: “A professora não me quis levar à prova da quarta classe.” O presente organiza-se em pequenas logísticas: táxi para o médico na Sertã, festa em julho — Senhora das Dores e Santiago —, música de adro, vizinhos por perto mas poucos.

A rádio veio como vêm os hábitos bons. “Já há trinta e tal anos que é a Rádio Condestável.” Depois, silêncio: o homem doente. “Era a minha companhia, o meu melhor amigo. Morreu há três anos.” Vieram o stress, a medicação, as consultas. “Um ano a ligar a rádio sem ligar para a rádio.” Quando o corpo assentou, agarrou outra vez o fio. Primeiro a Maria do Rosário — amizade que saltou do estúdio para a cozinha: “Ia lá a casa aos domingos, para a conversa.” Continua a falar com ela. Depois o Hugo coube-lhe como deve ser. “Gosto dele.” Reconhece-o na primeira sílaba: “Percebo pela voz — antes de dizer o nome.” Às vezes ele puxa: “Porque é que não ligaste?” E ela devolve: “Estive a ouvir o palavreado.” O palavreado, aqui, é afeto.

Na gaveta dos objetos úteis, a contabilidade precisa: “Tenho dois rádios a funcionar — quarto e cozinha. Tenho três, mas um não funciona.” O relógio interno repete o ritual: “Às cinco e tal acordo, acendo baixinho; se adormecer adormeço, senão é todo o dia.” Zanga-se quando a linha foge: “No dia a seguir reclamo. Digo: ‘Ouça, é pior que o Presidente!’ Ele responde: ‘A linha está disponível.’ Depois vou tentando.” Quase todos os dias tenta. É fama antiga na casa: “fã número um”, a que liga mais — e ela ri-se do rótulo.

A certa altura a lista de pessoas começa a cair como se as conhecêssemos todos. O rádio cria este truque de salão: não há rostos mas há histórias. Sorri quando enumero. A lista é um modo de dizer companhia. “Para o Manuel Ramos e a Rosário e o Carlitos, de Vila Velha de Ródão.” “Para a Leonor, de Ansião.” “Para a Georgina, do Tramagal: as melhoras da filha e do genro.” “Para a Quitéria, de Benquerenças.” “Para o João, de Torres Vedras.” “Para a Maria Adília e o Manuel Raul.” “Para o Paulo de Cousso.” Os nomes atravessam a tarde como andorinhas. Pergunto se os conhece. “Não, não. Não conheço nenhum. É como se fossem amigos — mas não conheço.” Reconhece a voz, guarda a lista “aqui” — e aponta para a cabeça como quem aponta para uma gaveta. Tem números de ouvintes: “Às vezes falo com a Fernanda. E a Dulce Cardoso.” Convidou a Fernanda para um café; está sempre por combinar — “trabalha até às cinco”.

Entrou no estúdio com a Maria do Rosário. “Salinhas pequeninas, com o microfone… Gostei.” Trabalhar em rádio? “Não.” Risos. “Já ouço rádio há 30 anos. Era um sonho, se calhar.” Ao fim de semana, às vezes não está — “vou a casa de amigos” —, mas pode ouvir “em qualquer lado”. E não se importa que a tratem pelo mapa: “Na rádio sou a ‘Natália da Codiceira’. Está bem assim.”

Os gostos chegam em voz baixa, sem catálogo: “Gosto da Amália. Gosto do António Mourão.” O Elvio Santiago ficou-lhe dos serões de televisão. O Benfica está no sítio habitual. Quando o Hugo faz anos, não complica: “Parabéns a você.” Para a amiga de sempre escolhe de olhos fechados: “Conjunto Maria Albertina, Dino Meira — para a Maria do Rosário.” Se a dedicatória fosse para o Presidente Marcelo, não muda o tom: “Gosto dele. Bombocas, para dançar.”

O portão azul pede fotografia. Senta-se. O Grundig pesa mais do que aparenta, o Hæger brilha ao sol. À volta, os vasos fazem moldura. Ali cabe quase tudo: o luto domado, a rotina de falar com vozes sem rosto, a paciência de repetir nomes até ficarem e a certeza simples de que um fio de telefone pode segurar uma casa. “Se a rádio acabasse?” A resposta chega sem atalhos: “Perdia ali uma família, quase.” Não é figura. Família, aqui, é uma lista que se diz todas as noites, com pequenas variações, notícias de saúde, parabéns de longe, recados que atravessam o mapa. Sem isso, o silêncio.

Regresso ao estúdio. Chega a hora de fechar o círculo. A noite já está na sua parte mais macia. A emissão pede-nos de volta, como se ficássemos um pouco à porta do estúdio à espera do momento certo de entrar. O relógio escorrega sobre a mesa, a luz vermelha acende. A voz de Hugo abre espaço com cuidado, a linha confirma, e regressa de novo a figura que atravessou o dia: 

— Viva, agora falo com a nossa ouvinte… 

— Com a Natália, da Codiceira. 

O som faz-se mais próximo, como quando um amigo entra em casa sem bater. A dedicatória chega com a naturalidade de um gesto antigo, um itinerário de afeto que percorre o mapa inteiro:

— Ora muito bem-vinda!

— Para todos os ouvintes e participantes. Para os teus colegas. Para alguém que está a ouvir. Para o Manuel Ramos, Rosário e Carlitos, de Vila Velha de Ródão. Para a Leonor, de Ancião. Para a Georgina, do Tramagal: as melhoras da filha e do genro. Para a Quitéria, de Benquerenças. E vai também para o Tiago, que estive com ele hoje: um beijinho e boa viagem para ele. E até uma próxima.

A régie roda um centímetro. “Vamos receber e recordar Amália Rodrigues.” A palavra “recordar” cumpre a sua promessa. Vem aí “Fado Menor”. E, de repente, não é apenas Lisboa a cair dentro da Sertã; é o país inteiro a ouvir os primeiros versos como quem acende duas velas:

Os meus olhos são dois círios
Dando luz triste ao meu rosto
Marcado pelos martírios
Da saudade e do desgosto

Não é a dor que fica. É o modo como, noite após noite, esta rádio pequena alumia com círios breves os rostos que não queremos perder. A “Linha da Amizade” dura o tempo de um serão mas deixa acesa a certeza de que, amanhã, alguém voltará a dizer o nosso nome. E isso, numa estrada chamada EN2, vale por uma família inteira.

O País do Meio não é um roteiro, pelo menos não turístico. Esta é uma série de 14 reportagens de Tiago Palma, para ler na CNN Portugal. De Trás-os-Montes ao Algarve, o jornalista desce a Estrada Nacional 2 e recolhe os retratos — íntimos, sabedores e naturais — de quem é das cidades, ou mais dos lugares, que a EN2 atravessa. Não são histórias de alcatrão, são histórias do caminho, do país real, ouvindo a voz de quem não é notícia — mas é um país, ou faz um país. Na antecâmara das Autárquicas de 2025, o pulso mede-se sem cartazes, sem promessas eleitorais, sem corta-fitas, sem política; o pulso mede-se como mediu Miguel Torga: “Cultivo-me pelos olhos e pelos pés, no alfabetismo íntimo das coisas”.

Esta é uma série de 14 reportagens de Tiago Palma, para ler na CNN Portugal. De Trás-os-Montes ao Algarve, o jornalista desce pela Estrada Nacional 2 e recolhe retratos íntimos de quem é destes lugares

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