“Por que não tem pessoas nesse livro?”, me pergunta minha filha de três anos assim que começamos a leitura. Lembro, então, da professora de história do primeiro ano do ensino médio apontando para as árvores no jardim da escola e dizendo: “Temos certeza de que as árvores não sentem e pensam, mas como podemos ter tanta certeza assim? Alguém aqui já foi árvore para saber que não sentem e pensam?”. Achei graça.
Devia ser 2001. Tanta coisa aconteceu de lá para cá. Davi Kopenawa publicou A queda do céu e Natalie Diaz escreveu o Poema de amor pós-colonial, alguns dos livros que me fizeram olhar diferente para as coisas. Mas até hoje recordo o primeiro contato com uma perspectiva não antropocêntrica.
Essa perspectiva rege A canção da árvore, de Coralie Bickford-Smith, com tradução de Cristiane Maruyama. A autora se propõe a sentir e pensar bem de perto as penas de um pássaro e os galhos de uma árvore — mais perto do que os livros costumam sentir e pensar.
A medida da poesia em Bickford-Smith não é humana, mas botânica, animal, mineral
A época das chuvas chegou e, depois de entoar uma canção de despedida, a revoada parte da árvore imponente no meio da selva que serviu de abrigo durante o inverno. Os pássaros vão em busca de um lugar mais quente. Mas a revoada é toda verde e amarela — nosso pequeno Pássaro vermelho, com P maiúsculo, é diferente dos outros e hesita.
Afinal, “para um jovem pássaro, essa árvore era como um lar, seus galhos eram tão familiares quanto suas próprias penas”. Pássaro diz que conhece as raízes e folhas da árvore, gosta de sua paz e calma, ama seus galhos firmes. Ele pergunta à árvore — e se pergunta — quem se abriga nos galhos, faz as folhas farfalharem, desenha caminhos na casca e canta canções de ninar quando a chuva vem.
O pássaro pergunta, mas a árvore não responde. Ela suspira — a noite cai com suas estrelas e nós descobrimos, junto com Pássaro, vários animais que orbitam aquela árvore, alguns deles camuflados nos desenhos deslumbrantes de Bickford-Smith.
Primeiro vagalumes, que convidam o pássaro a subir pela árvore, depois onças, um pavão, macaquinhos, borboletas… Cada um a seu tempo, cada vez mais no alto, os animais falam com o pássaro, contando como são e o que fazem, em charadas rimadas — ou versos de uma canção. “Me deleito em meu manto colorido e iluminado/ Você não vai me encontrar nem sob o sol nem sob o céu estrelado”, diz o camaleão.
Ilustração de Coralie Bickford-Smith (Divulgação)
Juntos, os animais que o pequeno pássaro vermelho encontra compõem a canção da árvore destacada no título. Uma canção que se faz de muitas vozes, de muitas vidas — da biodiversidade.
Quando finalmente chega ao topo da árvore, é a voz do vento que o pássaro escuta, convidando-o a partir — o vento, que leva consigo “cada canção já cantada”. No dia seguinte, Pássaro está tranquilo, porque agora sabe quantos animais têm a árvore como casa e, quando desabar a chuva, seguirão ali se abrigando nos galhos, fazendo farfalhar as folhas, desenhando na casca e cantando para ela dormir.
A árvore está protegida — não depende do cuidado só dele, mas do cuidado coletivo. Ele está ligado àquela árvore e àquele ecossistema, tem uma sensação de pertencimento que lhe dá coragem para partir. Depois de ter suspirado ao cair da noite, de manhã a árvore range e o pássaro ouve sua voz. A fábula termina com uma pergunta: já que não sabemos o que o pássaro ouviu antes de sair voando, resta imaginar.
Dilema humano
É claro que somos tentados a enxergar o dilema desse pássaro como o de quando crescemos, entramos na escola ou saímos de casa, quando mudamos de apartamento ou de país. Para algumas sensibilidades como a do pássaro vermelho, a mudança é mais dolorosa porque se preocupam com o que ficará para trás. A preocupação e o medo são ambivalentes: conjugam-se com o desejo de partir com o vento.
Essa é uma tentação — nos colar como pessoas (“Por que este livro não tem pessoas?”) ao que está sendo dito. Mas, mesmo que haja personificações aqui e ali, a história de Bickford-Smith não necessariamente aponta para esse caminho de leitura; ela é aberta e, talvez por isso, tão potente.
Ilustração de Coralie Bickford-Smith (Divulgação)
A medida de sua poesia não é humana, mas botânica, animal, mineral. Os animais não vestem roupas e não têm hábitos humanos, exceto pela fala. Suas formas de carinho — com exceção da canção de ninar que é cantada para a árvore — são características, como fazer as folhas farfalharem ou desenhar o tronco com os pés. Até o formato do livro lembra o da imponente árvore que é sua protagonista: grande, vertical, generoso, com cores exuberantes. A personagem fala sua própria língua, feita de suspiros e rangidos.
Por alguns minutos de leitura, suspendemos a perspectiva antropocêntrica e sentimos como árvores, pensamos como pássaros.



