Ivana Lowell estava na Irlanda para uma reunião de família em Castletown, a mansão palladiana (em referência à obra do arquiteto renascentista italiano Andrea Palladio) restaurada por seu primo Desmond Guinness no condado de Kildare, no leste do país. Foi ali que veio a inspiração.
Ela e os demais estavam assistindo na televisão a um episódio qualquer da série “Downton Abbey” (2010-2015). E as imagens da fictícia família Crawley lançando educadas farpas uns aos outros à mesa de jantar fizeram com que Lowell percebesse algo importante.
“A história da nossa família foi muito mais interessante do que esta —e foi tudo verdade”, contou ela à BBC, da sua arejada sala de jantar de East Hampton, em Nova York, nos Estados Unidos.
Assim que voltou para casa, Lowell se pôs a escrever uma sinopse de 20 páginas para televisão, dramatizando os triunfos e as dificuldades do seu clã, descendente de Arthur Guinness (1725-1803).
Ele foi o primeiro a produzir a famosa cerveja escura irlandesa stout que, hoje em dia, vende mais de 10 milhões de copos por dia, em todo o mundo.
Passada uma década, o aclamado diretor e roteirista Steven Knight, mais conhecido pela série “Peaky Blinders” (2013-2022), levou o conceito de Lowell para a tela da TV.
No dia 25 de setembro, a Netflix disponibilizou oito episódios da série “House of Guinness”, com uma indicação destacada nos créditos: “Baseado na ideia de Ivana Lowell.”
Lowell é filha da romancista Caroline Blackwood (1931-1996). E sua avó Maureen Constance Guinness (1907-1998), marquesa de Dufferin e Ava, foi uma das três “meninas de ouro Guinness”, conhecidas na alta sociedade britânica dos anos 1920.
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Ela reconhece que não foi fácil contar a épica história da família, que se estende por seis gerações. Ela envolve o notável sucesso comercial, um rico legado filantrópico e intrigas políticas, ao lado de inúmeras rivalidades, escândalos, segredos e tragédias familiares.
Lowell começou sua sinopse comentando a lenda da origem da cerveja escura Guinness, como tendo sido descoberta pela queima acidental de lúpulo.
Na verdade, Arthur Guinness, o fundador, provavelmente chegou deliberadamente à sua fórmula vitoriosa, permitindo que a cerveja de malte mais escuro amadurecesse em tonéis de madeira, concentrando seu sabor.
Para dar início à série de TV, Knight selecionou, na sinopse de Lowell, um evento posterior: a morte do neto do fundador, Benjamin Guinness (1798-1868), deixando quatro filhos.
Ele havia transformado a cervejaria fundada pelo avô em St. James Gate, na capital irlandesa, Dublin, em uma das maiores cervejarias do mundo. E os membros da família Guinness estavam entre os cidadãos mais ricos da Irlanda.
‘IMENSO LEGADO E ENORMES RESPONSABILIDADES’
O roteiro fará alguns espectadores se lembrarem de “Succession” (2018-2023), o sucesso da HBO livremente baseado no relacionamento entre o magnata das comunicações Rupert Murdoch e seus quatro filhos mais velhos.
Como naquela história, os ricos filhos enganam uns aos outros. Mas, em “House of Guinness”, os herdeiros precisam lidar com os desejos póstumos do seu patriarca e com as condições da Irlanda no século 19.
A Irlanda (lembrando que ela fez parte do Reino Unido de 1801 a 1922) vivia, na época, o ativo movimento de temperança —que defendia a moderação, e em alguns casos, a abstinência total do consumo de bebidas alcoólicas— e um tumulto político, alimentados pela dominância da próspera elite protestante, à qual pertencia a família, sobre a empobrecida maioria católica.
“Todos eles eram muito jovens e seu pai deixou enormes responsabilidades e um imenso legado”, conta Lowell, sobre seus quatro personagens principais. “Cada um deles foi forçado a encontrar um caminho”.
A única filha, Anne, por ser mulher, herdou apenas um montante nominal, mas se comprometeu a tirar proveito dos fundos da família para melhorar a vida dos pobres e doentes em Dublin e no interior da Irlanda.
O filho Benjamin também não recebeu uma grande fortuna. O velho Benjamin o considerava alcoólatra e fraco demais para liderar a família.
Já o filho mais velho, Arthur, esperava receber essa incumbência e vir a ter carta branca para controlar a cervejaria. Mas a leitura do testamento do seu pai mostrou que ele seria obrigado a dividir a posse da empresa com seu inteligente, mas austero, irmão Edward.
A complicada parceria entre os irmãos – dois opostos que foram reunidos, com frequentes ressentimentos um pelo outro —forma o núcleo dramático de “House of Guinness”.
Da mesma forma que se inspirou nas histórias de infância dos seus pais na cidade britânica de Birmingham, dominada pelas gangues, para produzir “Peaky Blinders”, foi conversando com Lowell que Steven Knight descobriu a fonte criativa necessária para transformar “House of Guinness” em realidade.
“Ivana é uma completa mina de informações e histórias não contadas sobre a família ao longo dos anos”, declarou ele no comunicado à imprensa sobre a série.
“Conhecê-la foi a melhor forma de pesquisa que poderia imaginar, pois não recebia apenas as histórias, mas as confidências [da família], seu espírito e a leve loucura… fiquei encantado.”
IMPLACÁVEIS, MAS NÃO VILÕES
“House of Guinness” apresenta uma família de comerciantes. Bem-sucedida, é verdade, mas determinada a usar os meios que fossem necessários para expandir ainda mais os seus negócios e aproveitar a vasta mão de obra disponível.
A maior parte da história tem lugar na Irlanda. As docas de Liverpool, na Inglaterra, substituíram a cervejaria de St. James Gate nas filmagens.
E algumas cenas se passam em Nova York, onde um primo dos Guinness é destacado para promover o crescimento internacional da empresa.
Os fenianos —revolucionários irlandeses envolvidos em luta armada para libertar a Irlanda do Reino Unido— são observados atacando os interesses dos Guinness, como ocorreu na vida real. Mas a companhia era conhecida por tratar bem seus funcionários, oferecendo salários acima da média e aposentadorias por idade.
Edward Guinness, depois conde de Iveagh (1847-1927), declarou certa vez que “você só pode ganhar dinheiro com as pessoas, se estiver disposto a fazer com que as pessoas ganhem dinheiro com você”.
A ação se desenrola nas imensas e encardidas instalações da cervejaria, nos salões de baile e mansões de Dublin e no deserto interior irlandês. Ali, duas décadas depois da Grande Fome da Irlanda (1845-1849), as pessoas que ainda não tivessem “fugido para Boston”, nas palavras de um dos personagens, viviam em casebres com teto de palha.
O amor pela Irlanda e pelos irlandeses faz parte do legado privilegiado da família. Mas a história de Lowell se concentra em mostrar como eles andaram na corda bamba em um momento inquietante da história e conspiraram para progredir, pessoal e comercialmente.
“Como encontrar o tom correto?”, comenta a autora à BBC. “Eu não queria que eles fossem vilões, mas todo comerciante precisa ser implacável, ainda mais naquela época.”
Uma decisão importante, que forneceu “o conflito e a paixão que tornam uma história interessante”, segundo a autora, foi a invenção de um personagem – o capataz bonitão da cervejaria, Sean Rafferty.
Interpretado pelo ator James Norton, com um toque sexy e perverso, Rafferty age como o implacável faz-tudo da família. Mas, mesmo com toda a sua astúcia e lealdade aos Guinness (especialmente às mulheres), eles nunca o deixam esquecer que é seu funcionário, não um de seus iguais.
CRESCENDO NA FAMÍLIA GUINNESS
Ivana Lowell, 58, não tinha formação como roteirista de ficção, nem para a televisão. Mas ela acredita que os longos períodos passados durante a infância em mansões isoladas, com pouco aquecimento e sem TV, na Irlanda e na Inglaterra, acabaram sendo úteis.
“Contar histórias era a nossa forma de entretenimento”, relembra ela.
Lowell cresceu com suas duas irmãs mais velhas, Natalya e Evgenia Citkowitz, e um irmão mais novo, Sheridan Lowell.
Ela observava sua mãe e seu padrasto, o poeta americano Robert Lowell (1917-1977), dedicarem seus dias a escrever. Não que aquilo a atraísse muito na época: “Para mim, era aborrecido ficar trancado no seu próprio mundo o tempo todo”, relembra ela.
O início da vida de Lowell foi marcado pela perda. Seu padrasto sofreu um ataque cardíaco fulminante e sua irmã Natalya morreu por overdose de heroína, aos 18 anos de idade.
Caroline Blackwood, sua mãe, era alcoólatra e, muitas vezes, negligente. E deixou de contar a Lowell a verdade sobre sua família.
Ela acreditava que seu pai fosse o segundo marido de sua mãe, o compositor Israel Citkowitz (1909-1974), até que, um dia após a morte de Blackwood, um amigo levantou dúvidas a este respeito.
Lowell ficou sabendo que sua mãe havia levado dois homens a acreditar que poderiam ser seu pai: Robert Silvers (1929-2017), editor de longa data da New York Review of Books, com quem Lowell mantinha um relacionamento carinhoso, e Ivan Moffat (1918-2002), roteirista e produtor de cinema, por quem não sentia tanto afeto.
Um exame de DNA acabou confirmando que ela era filha de Moffat.
Lowell descreveu a odisseia dessa descoberta nas suas eloquentes e, em certos momentos, angustiantes memórias “Why Not Say What Happened?” (“Por que não dizer o que aconteceu?”, em tradução livre).
Para coincidir com o lançamento de “House of Guinness”, o livro, publicado originalmente em 2010, será relançado ainda este ano, pela editora Vintage, nos Estados Unidos, e pela Bloomsbury, no Reino Unido.
Para ela, escrever não é mais fácil só por se ter pais ligados à literatura.
“Quando li a obra completa da minha mãe (Caroline Blackwood), depois de adulta, observei como ela escrevia bem”, ela conta. “E li Giant [a peça teatral da qual (Ivan) Moffat foi um dos autores, em 1956] e é boa. Inevitavelmente, tive um certo medo.”
O fato de Knight ter visto algo na história criada por ela foi uma forte emoção. E a série de TV resultante, com certeza, não é um drama de costumes no estilo de “Downton Abbey”. É uma produção barulhenta, em alta velocidade, repleta de acontecimentos nefastos. Em muitos aspectos, ela relembra “Peaky Blinders”.
Lowell elogia o hábil malabarismo de Knight, com seu roteiro político da história dos dois irmãos, interpretados por Anthony Boyle (Arthur) e Louis Partridge (Edward).
“E as tiradas que ele deu a Arthur são brilhantes”, destaca ela.
Tudo isso vem como um alívio para Lowell, que se preocupava em não desapontar sua legião de primos da família Guinness. Eles incluem Daphne Guinness, estilista e atriz, e o escritor Ned Iveagh, o quarto conde de Iveagh.
Ela tem certeza de que eles não se importarão com a divulgação da lavagem de roupa da família.
“Não somos arrogantes quanto à nossa reputação”, ela conta. “Temos ótimo senso de humor sobre nós mesmos.”
Uma série que fosse composta apenas de “bobagens fofas” não traria bons resultados. Mas este risco não existe.
Como a cerveja escura que, por tanto tempo, foi sinônimo de bares irlandeses e homens mais velhos, mas agora tem sua popularidade renovada entre os jovens, a história dos Guinness tem uma energia —e uma trilha sonora— que pode ser tudo, menos sem graça.
A série certamente irá agradar o paladar de muitas pessoas. “House of Guinness” estreou na Netflix em 25 de setembro.
Texto publicado originalmente aqui.