Em um importante passo para diminuir a fila do transplante de órgãos, uma equipe internacional de cientistas obteve sucesso ao converter um rim do tipo sanguíneo A para o tipo sanguíneo O. Transformado em um órgão “universal”, o rim foi transplantando em uma pessoa com morte cerebral e funcionou bem durante dois dias antes de apresentar sinais de rejeição.

Segundo os responsáveis, a técnica emprega enzimas capazes de iniciar certas reações químicas no corpo e o seu aprimoramento pode abrir caminho para tempos mais curtos nas listas de espera por doadores de órgãos. Os resultados obtidos por eles foram descritos em detalhes em um artigo publicado nesta sexta-feira (3) dentro da revista Nature Biomedical Engineering.

Cuidados nos transplantes de órgãos

O transplante renal é um tratamento para pacientes com doenças nos rins desde a década de 1950. No entanto, como todo procedimento desse tipo, ele é um tanto limitado pela necessidade de combinar o tipo sanguíneo do doador com o do receptor, além da obrigatoriedade de encontrar um órgão de tamanho apropriado e geograficamente próximo o suficiente para realizar o transplante a tempo.

Humanos têm quatro grupos sanguíneos principais — A, B, AB e O — e o sistema imunológico de uma pessoa com um tipo sanguíneo pode reagir contra outro tipo. Por exemplo, um candidato a transplante com sangue tipo O só pode receber um rim de um doador tipo O, mas alguém com sangue tipo A, B ou AB também pode receber um rim tipo O.

Isso ocorre porque cada tipo sanguíneo é definido por substâncias imunoativas, as quais são chamadas de antígenos. O sangue O não possui esses antígenos, portanto, pode ser doado universalmente, enquanto outros tipos sanguíneos ativariam o sistema imunológico de uma pessoa tipo O.

No entanto, no final da década de 1980, cientistas desenvolveram uma maneira de transplantar órgãos ABO-incompatíveis (ABOi), isso é, um órgão de um doador com um tipo sanguíneo para um doador com um tipo sanguíneo incompatível, em receptores que precisavam deles. Mas o processo é complexo e leva vários dias.

Então, em 2022, pesquisadores desenvolveram um protocolo de tratamento baseado em enzimas que pode converter um órgão em um transplante “universal”. Ele ficou conhecido como “O2 convertido por enzima”, ou simplesmente “ECO”.

Conversão para um órgão universal

“O processo ECO já foi demonstrado para pulmões”, explica Stephen Withers, professor da Universidade da Colúmbia Britânica e coautor do estudo, ao portal Live Science. “Esperamos que funcione para todos os outros órgãos — e deve funcionar.”

Withers fez parte da equipe de 2022 que converteu pulmões do tipo A para o tipo O. Mas essa equipe não transplantou os pulmões ECO em uma pessoa naquele experimento de prova de conceito, como ocorreu neste novo esforço.

No processo de converter o rim, os pesquisadores adicionaram enzimas específicas ao fluido de perfusão que removeram os antígenos do grupo sanguíneo que poderiam causar rejeição. Dessa forma, esperava-se que o órgão não fosse reconhecido como um agente estranho e atacados pelos anticorpos anti-A presentes na corrente sanguínea do receptor.

Para verificar se o rim escaparia da rejeição imediata em um ser humano, a equipe recorreu a um receptor com morte cerebral, cuja família consentiu com o estudo. Os especialistas, então, transplantaram o rim ECO no receptor, que possuía uma alta quantidade de anticorpos anti-A. Ao todo, o procedimento levou cerca de duas horas.

Em um transplante típico, a terapia com anticorpos é administrada ao receptor antes e depois do transplante para prevenir a rejeição “hiperaguda”, que ocorre rapidamente. Mas, neste caso, o objetivo era justamente testar se a criação de um rim ECO evitaria a rejeição precoce, por isso não se aplicou essa terapia.

Potencial do procedimento

De acordo com a descrição dos pesquisadores, o rim ECO funcionou bem por dois dias após o transplante, sem sinais de rejeição. As respostas imunológicas ao novo rim surgiram no terceiro dia, quando o rim ECO começou a produzir novos antígenos A.

“Em um transplante clínico real, há uma série de procedimentos que podem ser aplicados para minimizar a rejeição inicial mediada por anticorpos, incluindo a imunossupressão otimizada”, pontia Withers. Se esses métodos, que são o tratamento padrão em qualquer transplante de órgão, também forem usados para rins ECO, isso poderá permitir uma tolerância ao transplante a longo prazo.

A conversão de órgãos de um tipo sanguíneo para outro é importante para aumentar o acesso dos pacientes a órgãos de doadores, escreveram os pesquisadores no estudo. Isso é particularmente importante para candidatos a transplante do tipo O, que constituem mais de 50% da lista de espera e normalmente esperam de 2 a 4 anos a mais do que outros tipos sanguíneos.

Por mais que o rim ECO tenha sido transplantado com sucesso, o desenvolvimento desse processo de transplante ainda está em estágios iniciais. “Não sei se isso será aplicado universalmente. No entanto, é certamente uma possibilidade”, avalia Withers.