Maggie O’Farrell ficou conhecida internacionalmente com a publicação de Hamnet (2020), o romance inspirado na criação de Hamlet que explora a perda e o amor de uma mãe por um filho. O livro, publicado em Portugal em 2021 pela Relógio d’Água, venceu, em 2020, o Women’s Prize for Fiction e o National Book Critics Circle Award for Fiction. Mas quando O’Farrell lançou Hamnet, que em breve chegará aos cinemas numa adaptação da realizadora Chloé Zhao, a autora contava já com uma longa bibliografia, iniciada no início dos anos 2000 com After You’d Gone (ainda sem publicação em Portugal). Entre os seus romances mais bem recebidos contava-se O Estranho Desaparecimento de Esme Lennox (2006), (re)publicado em Portugal em setembro, também pela Relógio d’Água (depois de uma primeira edição portuguesa, em 2011, pela Presença)
O romance conta a história de Euphemia Lennox — Esme —, uma mulher que, por ser diferente, foi renegada pela família e encarcerada num asilo psiquiátrico em Edimburgo, onde passou praticamente toda a sua vida (apesar de não sofrer de qualquer doença psiquiátrica). Um tabu entre familiares, o nome de Esme é apagado da árvore genealógica dos Lennox, até que é resgatado por uma sobrinha-neta, Iris Lockhart. Iris, que sempre pensou que a avó era filha única, descobre a existência silenciosa de Esme quando é inesperadamente contactada pelo asilo onde a tia-avó está internada há seis décadas. O hospital Cauldstone foi vendido (o terreno onde foi construído, na zona antiga de Edimburgo, vale milhões) e está prestes a encerrar e é preciso encontrar um novo lar para os doentes. Aqueles que não podem ser recebidos pela família, serão realojados. Iris é a familiar mais próxima de Esme. A sua avó, Kathleen Lockhart — Kitty —, nomeou-a responsável pela irmã mais nova quando ficou doente com Alzheimer, mas esqueceu-se de informar a neta.
Quando é contactada pela unidade especializada em psiquiatria, Iris tem dificuldades em acreditar na existência dessa tia perdida, cujo olhar lhe faz tanto lembrar o pai, que morreu quando era ainda criança. A mãe, a viver na Austrália, nunca ouviu falar em Esme. E a avó, ela própria internada numa unidade de cuidados especializados, está ausente no “país do Alzheimer”. O choque da descoberta leva a jovem mulher a questionar a história “oficial” da sua família, a tentar encontrar respostas junto da avó, que renegou a própria irmã, e a fazer sentido da nova realidade.
Título: “O Estranho Desaparecimento de Esme Lennox”
Autora: Maggie O’Farrell
Tradução: Lucinda Santos Silva
Editora: Relógio D’Água
Páginas: 184
Narrado a três vozes — a de Iris, Esme e Kitty — e em dois tempos — o do passado e do futuro —, o livro relata a dramática vida de Esme, desde a sua infância na Índia, onde ela e a irmã nasceram, até ao regresso da família a Edimburgo após a morte do seu irmão bebé, Hugo, de febre tifóide. Nascida numa família escocesa abastada e conservadora, Esme nunca foi capaz de corresponder às expectativas familiares. Estranha, irrequieta e curiosa, preferia passar os seus tempos livres a correr pela propriedade da família na Índia do que sentada e bem comportada, como uma boa menina. Uma das suas memórias mais antigas é a de uma festa dada pelos pais na sua casa. Os convidados falavam sem parar, mas Esme não conseguia encontrar uma única coisa que lhes quisesse dizer. Eram todos tão desinteressantes, tão diferentes dela. Para fugir à realidade, Esme refugiava-se no mundo dos sonhos, onde se perdia durante minutos a fio, para espanto e choque dos que a rodeavam. “O que se passa com ela?”, perguntava o pai. Quando tinha 16 anos, foi internada em Cauldstone e esquecida pela família. Tinha-se tornado um incómodo demasiado difícil de suportar.
Ao longo dos anos, Esme foi diagnosticada com diferentes doenças por diferentes especialistas (transtorno de personalidade, bipolaridade…) e tratada com choques elétricos, um tratamento habitualmente prescrito para mulheres que, no início do século XX, tinham ou aparentavam ter alguma doença do foro psiquiátrico. Aos 76 anos, quando Iris a encontra em Cauldstone, Esme é uma mulher idosa e pacificada com a sua situação, mas é também alguém que não foi capaz de ultrapassar o que lhe aconteceu. O encontro inesperado com a sobrinha-neta é uma oportunidade para ambas as mulheres sararem as suas feridas e encontrarem o conforto, há muito desejado, numa história comum que não sabiam que existia.
O Estranho Desaparecimento de Esme Lennox está longe de ser o melhor romance de O’Farrell. Literariamente, está longe de obras como Hamnet e O Retrato de um Casamento (2023) – a escrita é menos elevada –, mas isso não significa que seja menos impactante ou escrito com menor sensibilidade. Tal como estes dois (mais recentes) romances, O Estranho Desaparecimento olha para o passado para abordar o tema do preconceito contra as mulheres e como estas eram facilmente descartadas pela família quando não correspondiam aos valores sociais e morais vigentes. Tal como as mulheres “caídas em desgraça” que trabalhavam nas Lavandarias de Madalena, na Irlanda (o tema do conhecido livro de Claire Keegan, Pequenas Coisas Como Estas), Esme foi encerrada num asilo “para malucos” e esquecida. Ao contrário dos homens, ao qual tudo é permitido, a filha mais nova dos Lennox não tem escolha — a ela, nada lhe é permitido, incluindo ser ela própria.