Crónica de um adeus anunciado
on Julho 31, 2025 at 11:54 am
O que torna uma família disfuncional? A pergunta, já por si difícil, obriga a fazer um retrato da nossa experiência e de quem nos é mais próximo. E a resposta implica vários conceitos, sendo o abuso, seja físico, emocional, financeiro ou outro, um ponto de partida para se enquadrar um conjunto de pessoas unidas pelos laços de sangue nesse complexo sistema relacional.
Por isso, falar do assunto, e principalmente vivê-lo, torna tudo mais complicado, faz a vida mais difícil, e com que, muitas vezes, demasiadas, o silêncio esmague qualquer tentativa de pedir de ajuda, sendo a fuga uma solução.
É sobre esse território assombrado que versa O aniversário (Alfaguara, 2025), livro estreia do italiano Andrea Bajani em português e um desses casos raros em que a contenção emocional se converte em potência narrativa. Isto porque através de uma escrita crua, sóbria e profundamente introspetiva, Bajani cria um romance de conflitos e confrontos, seja com a família, a memória ou o que resta quando se decide cortar decisivamente relações com os pais.
Esse abandono é logo anunciado nas primeiras páginas do livro, assim como a consciência de que essa ação, tomada há dez anos sem qualquer aviso, marca que merece a devida comemoração, significa os melhores anos da vida de quem o confessa, neste caso o narrador. Partindo dessa premissa, assistimos a um monólogo interior que revisita traumas da infância e juventude vividos sob o domínio de um pai autoritário e emocionalmente abusivo, e de uma mãe silenciada pelo medo e pela dependência do marido. Existe também uma irmã, mas cujo papel revolucionário e disruptivo no seio da família confere-lhe uma presença secundária, ainda que importante por se destacar pela tomada de decisão de não fazer parte do quotidiano familiar.
Neste livro, ninguém tem nome. Há um eu, um pai, uma mãe, uma irmã. Também não há um enredo no sentido tradicional, nem sequer diálogos. Há, e muito, reflexões medidas por palavras escritas, a noção de que se vive em território italiano ou a presença de um telefone escondido na cozinha que torna a comunicação com o exterior um ato no limiar do punitivo e do proibido.
Essa marginalidade “visual” e de escrita permite recusar um dramatismo fácil e mergulhar num romance que dói e faz doer, que nos confronta com a dor, com a repetição circular dos pensamentos, com a revisitação obsessiva de episódios familiares, com perguntas não respondidas e com gestos que nunca chegaram.
Esse (quase) niilismo narrativo, essa aridez sentimental onde as emoções estão impedidas de ser personagem, afastam o protagonista do caminho da reconciliação ou redenção. Aquilo que pretende é não voltar a sentir a violência surda do qual foi alvo, das chagas que guarda na pele, que lhe valeram uma vida marcada pela instabilidade, muitas vezes sinónimo de tremores físicos e desarranjos intestinais.
E desengane-se quem procura em O aniversário qualquer tentativa de catarse emocional, pois Bajani opta por dissecar cirurgicamente os mecanismos da dominação familiar, onde ao pai tudo é permitido, surgindo como símbolo de um poder que reduz todos à obediência, incluindo a mãe servil, cúmplice involuntária do sistema opressor e que optou por desaprender a viver para não confrontar o “chefe”, no pior sentido da palavra, da casa e da suas vidas.
Ainda que em alguns momentos o livro pareça perder um pouco o norte, tal o beco que protagonista e a sua mãe vivem perante as suas fragilidades, basta uma pequena frase, dentro de capítulos curtos, para mudar o sentido dessa bússola. Esse estado clínico de escrever mantém viva a envolvência do leitor que quer saber como se curam tantas feridas originadas por um ambiente que traumatiza e onde o “amor” era uma forma de vigilância e a presença familiar, um instrumento de controlo.
Não sendo um livro fácil, O aniversário marca-nos pela simplicidade como entrega uma história, como faz com que nos deixemos agitar por ela, como nos incomoda. Essa capacidade e qualidades, não pertença de muitos, valeu a Bajani inclusivamente a conquista do mais recente Prémio Strega. E, para memória futura, fica um livro que faz pensar na persistência de formas subtis de violência doméstica e na difícil arte de nos reerguermos, não como vítimas, mas como seres reconstruídos pelo silêncio e pela ausência. Se isso implica mudar de número de telefone, de casa e de continente, então que assim seja, pois vale tudo para afastar a sombra de anos a engolir a dor, pois vale tudo para descobrir e tornar-nos quem somos.
Apaixonado pelos sons, imagens e histórias que me rodeiam, gosto de refletir essas ideias por via da palavra, seja ela escrita ou falada, mas sempre sentida. O amor pela música, livros e quejandos, é coisa que, em mim, não encontra medida palpável, é forma de respirar que transcende fronteiras, funde ritmos, estilos e filosofias.