A hora da sesta no Colégio Mãe Maria, em Lisboa, foi interrompida naquela manhã pela chegada da PSP. Os agentes entraram descaracterizados e, para surpresa dos funcionários, apresentaram um mandado emitido por um tribunal meses antes com vista à entrega de um menor ali inscrito. Passados escassos minutos, escoltaram Manuel, de dois anos, ao colo do pai e ainda meio adormecido, para fora da escola. O episódio, em dezembro de 2023, que culminou com a partida do menor para os Países Baixos, marcou mais um capítulo numa disputa legal entre o pai, neerlandês, e a mãe, portuguesa, que se arrasta desde o nascimento da criança.

A história, que chegou a ser transmitida nesse ano num programa de televisão neerlandês, não ficou encerrada com a entrega do menor ao pai com quem vive desde então. Em setembro deste ano, a mãe e a equipa legal, que contestam a decisão, avançaram com uma campanha a divulgar o sucedido. “A Holanda tirou-lhe o filho, Portugal permitiu”, é a denúncia que se lê em publicações nas redes sociais, num vídeo publicado no YouTube e em outdoors e cartazes na capital portuguesa. Nas redes sociais os conteúdos chegaram às 488 mil visualizações.

Ana Bravo, a mãe de Manuel, alega que a família se fixou em Lisboa, onde ele estava a ser acompanhado devido a problemas de saúde, e que o mandado para a entrega do filho ao pai foi cumprido de forma ilegal e sem que tivesse sido previamente informada. “Nunca fui notificada de absolutamente nada”, garante em entrevista ao Observador. Critica também os tribunais neerlandeses, que acusa de serem “xenófobos” e de ignorarem provas relevantes para o caso.

A versão destoa do relato da advogada do pai da criança. Arjan Blockland não quis prestar para já declarações à imprensa, mas deixou que a mandatária, que recebeu autorização da Ordem dos Advogados para se pronunciar publicamente sobre o caso, falasse por si. Sublinhando que só o faz para defender o cliente do que descreve como uma campanha de “difamação”, Inês Carvalho Sá começa por afirmar que a mãe trouxe o menor para Portugal para um período de férias autorizado pelo ex-marido. Diz que, como esta não regressou aos Países Baixos, violou a decisão de um tribunal neerlandês de 2021 que regulava as responsabilidades parentais e concedia ao pai tempo com o filho.

“Ficou em Portugal indevidamente, ilicitamente e em incumprimento das regras legais”, sublinha a advogada, notando que isso motivou uma queixa do pai do menor à polícia neerlandesa em dezembro de 2021. Os anos seguintes trariam processo atrás de processo, sem que, diz a mandatária, o pai estivesse com o menor. “Esteve dois anos sem estar fisicamente e pessoalmente com o filho e sem saber onde ele estava”.

Ana Bravo conheceu Arjan Blockland em 2018, numa altura em que trabalhava entre os Países Baixos e Portugal. O primeiro contacto foi através de uma aplicação e acabou por dar lugar a um casamento “rápido”, celebrado em Portugal um ano depois. Passados outros dois anos nasceu, também em Portugal, o filho Manuel, que às 32 semanas foi diagnosticado com hidronefrose bilateral, uma doença que afeta os rins. Segundo a mãe do menor, por mútuo acordo foi decidido que os três se estabeleceriam em Portugal, não só por considerarem que o serviço de saúde prestaria melhores cuidados à criança, mas também porque teriam o acompanhamento da família, em particular da irmã e do pai, ambos profissionais de saúde. Também teria pesado na decisão ter sido “maltratada” nas vezes em que teve de recorrer ao sistema de saúde neerlandês. Apesar de se fixarem em Lisboa, conta que compraram, a meias, uma casa nos Países Baixos para que quando viajassem pudessem conviver.

“Como família estivemos lá umas três vezes”, afirma a mãe. O motivo, diz, foram os problemas na relação, que começaram ainda antes do nascimento do filho. “Ao fim de seis meses começou a violência doméstica, passei a gravidez praticamente sempre fora de casa”, sublinha Ana Bravo. Chegou a apresentar queixa por violência doméstica em Portugal, mas esta foi arquivada pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, relata, que declarou que não tinha competência para se pronunciar porque os episódios aconteceram nos Países Baixos. A mulher ainda pensou apresentar queixa em Haia, mas afirma que desistiu perante a insistência de advogados de que poderia ser acusada de alienação parental.

Ana Bravo conta que, depois do nascimento do filho, se separou do marido, mas tentou manter algum contacto. “Mesmo estando separados fomos celebrar os 40 anos do meu marido à Holanda, também para o Manuel conhecer os avós. Aí sim, mesmo tendo esse acordo todo, ele negou que o Manuel voltasse e que nós voltássemos. Começaram logo aí as acusações, as ameaças de rapto”, diz, afirmando que o à época companheiro a expulsou e ao filho da casa comum nos Países Baixos.

Em 2021, “tive de pôr um processo em tribunal [nos Países Baixos] para regressar a Lisboa para ele fazer os tratamentos”, afirma, acrescentando que viu o episódio como o “abandono” do filho pelo pai. “Foi a gota de água. Uma pessoa dá sempre o benefício da dúvida, vai melhorar, vai melhorar, eu não faço mais isto, mas voltamos ao mesmo ciclo. Até que foi mesmo chega, não dá mais. Ainda mais com o abandono do Manuel, o problema emocional, físico, financeiro, tudo levou depois ao divórcio”.

Durante a gravação do programa neerlandês que acompanhou a entrega do filho, Arjan confirmou que o matrimónio foi rápido. “Tivemos um casamento lindo. Toda a gente estava lá”, afirmou, revelando que “queria ser pai outra vez há muito tempo”. Explicou que muitas coisas na relação aconteceram “suavemente”, mas que a certo ponto chegaram os problemas: “Ela via-me como um homem zangado. Acabou por decidir deixar-me por um tempo para ver se conseguíamos resolver as coisas”.

Segundo Arjan Blockland, os dois começaram a fazer terapia de casal, que trouxe melhorias. Mas já depois do nascimento do filho, quando viajaram para o seu 40.º aniversário, a situação agravou-se. “Ela deu-me uma resposta muito dura: ‘Não consigo lidar mais com isto, quero que te vás embora’”. E assim fez, alega. Ao Observador, a advogado sublinha que Arjan Blockland nega quaisquer abusos ou atos de violência.

Com a separação do casal começou o envolvimento dos tribunais. Em resposta ao pedido que a mãe fez à justiça neerlandesa para viajar para Portugal, os progenitores foram ouvidos em tribunal. Por um lado, na decisão de março de 2021 a juíza resume que a mãe alegou que era necessário que os tratamentos já marcados em Portugal se realizassem, que queria o consentimento para essas e outras intervenções médicas que fossem relevantes, e que iria regressar aos Países Baixos o mais rápido possível. Por outro lado, que o pai tinha relatado que após o nascimento da criança a mãe expressou tantas dúvidas sobre a continuação do relacionamento que nesse mesmo mês o pai se sentiu compelido a deixar a casa conjugal nos Países Baixos para onde se tinham mudado meses antes. Disse ainda que tudo isso destruiu a confiança que tinha nela. “Como, segundo o pai, ela tem pouca ou nenhuma ligação com os Países Baixos, ele não dá qualquer valor à promessa dela de que voltará aos Países Baixos com Manuel“, lê-se. Esse foi também o motivo invocado em tribunal por Arjan Blockland para retirar a autorização que inicialmente concedeu para tratamentos médicos em Portugal.