A Polícia Judiciária (PJ) deteve duas funcionárias administrativas de uma Unidade de Saúde Familiar (USF) por suspeitas de “inscrição fraudulenta de milhares de imigrantes no Sistema Nacional de Saúde (SNS)”, avançou esta quarta-feira a PJ em comunicado. Ao que o Observador apurou, as duas funcionárias trabalhavam na USF de Laços, em Cortegaça, no concelho de Ovar.

Segundo fonte da PJ adiantou ao Observador, as duas funcionárias terão inscrito cerca de 10.000 imigrantes no SNS durante ano e meio, dos quais sensivelmente 500 teriam dado a mesma morada na Rua do Benformoso, em Lisboa. Os principais países de origem destes imigrantes que obtiveram os seus registos no SNS de forma fraudulenta eram Bangladesh, Paquistão, Argélia, Índia e Brasil, entre outros.

Perante a “forte prova” reunida pela PJ, as duas funcionárias terão assumido a ligação à organização e a atividade desenvolvida. Foram já presentes a juiz para o primeiro interrogatório judicial no Tribunal Central de Instrução Criminal e ficaram em liberdade, sujeitas às medidas de coação de suspensão de funções e de proibição de contactos entre elas e com os elementos da organização criminosa.

A mesma fonte avançou que esta “é uma investigação muito complexa e longa, já com várias fases”, tendo começado em 2023 e conhecido a primeira grande operação em maio deste ano, quando foram detidas mais de uma dezena de pessoas de uma organização criminosa que estava espalhada pelo país, mas com presença sobretudo na região Centro e em Lisboa.

“Foi muito desafiante e tentamos usar metodologias diferentes nesta investigação. Isto permitiu-nos perceber a orgânica e como funcionavam. Era um grupo que movimentava muitos milhões de euros, dezenas de milhões só pela análise dos fluxos financeiros, em que os diferentes elementos recebiam de acordo com as tarefas destinadas. O ponto era oferecer um pacote de serviços a imigrantes de várias proveniências e depois tratavam de todo o tipo de documentação, incluindo documentação fraudulenta, como contratos de trabalho”, refere a mesma fonte.

Segundo a investigação, muitos dos imigrantes não pretendiam ficar em Portugal, mas apenas ter “uma aparência de legalidade de ligação” ao país para depois rumarem a outros países sem perderem a vinculação a Portugal e à oferta de serviços que vinha com a legalização: “Estamos em crer que uma quantidade bastante expressiva não ficou em Portugal. Estas pessoas são utentes do SNS, mas podem estar lá fora e virem cá para ser tratados. A cereja em cima do bolo é serem beneficiárias do SNS, com todas as vantagens que oferece”.

A mesma fonte realça que “estes grupos aproveitaram-se das fragilidades” do sistema nacional. “Não se pode dizer que sejam imigrantes ilegais, mas são imigrantes que se legalizaram de forma fraudulenta ou com base em pressupostos fraudulentos fornecidos por este grupo criminoso”.

Sobre as duas funcionárias da USF Laços, em Cortegaça, a investigação apurou que uma terá sido recrutada diretamente pela organização criminosa, enquanto a outra terá sido introduzida na atividade pela colega de trabalho, face à relação de confiança entre ambas, recebendo um determinado valor por cada utente registado no sistema.

“Estamos convencidos que parte dos proventos irão para o estrangeiro, recorrendo a empresas de transferência de capitais”, sublinhou fonte ligada à investigação, realçando que as duas funcionárias terão recebido “alguns milhares de euros”, embora o valor real esteja ainda a ser calculado.

Aliás, as duas funcionárias estavam localizadas na região Centro-Norte do país, mas atribuíram números de utente a pessoas que forneciam moradas de todo o país e, ao que o Observador apurou, alguns nem forneciam sequer qualquer morada, à margem dos requisitos necessários para qualquer pessoa — incluindo imigrantes — ter acesso ao SNS.

A diligência da Diretoria do Centro da PJ insere-se na operação “Gambérria”, que já levou anteriormente à detenção de 16 pessoas e à constituição de 26 arguidos, entre as quais, de acordo com a nota divulgada, se incluem sete empresários, uma advogada e uma funcionária da Direção-Geral dos Assuntos Consulares e das Comunidades Portuguesas do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

“Importa referir que a obtenção do Número Nacional de Utente (NNU) representa a consolidação do processo de legalização em território nacional e a garantia de assistência médica através do SNS“, refere o comunicado.

A operação comunicada esta quarta-feira realça a realização de duas buscas domiciliárias, bem como buscas na USF de Laços, “resultando destas diligências a apreensão, entre outros, de um enorme acervo de documentação utilizada em processos de atribuição de forma indevida de números de utentes”.

As duas mulheres, de 40 e 54 anos, são agora suspeitas da prática dos crimes de corrupção passiva, associação de auxílio à imigração ilegal e falsidade informática.

As detenções foram efetuadas ao abrigo de mandados de detenção emitidos pelo DIAP Regional de Coimbra e o inquérito já foi considerado de especial complexidade.

(Notícia atualizada às 19h15 com mais informações sobre a investigação e as medidas de coação)