Laura Kovesi tem 52 anos mas uma longa história da defesa da Justiça e pela Democracia. Nasceu na Roménia do ditador comunista Nicolae Ceaușescu e nos tempos em que a União Soviétiva mandava na Europa de Leste através do Pacto de Varsóvia. Talvez por isso a sua luta pelo Estado de Direito e pelo princípio da separação de poderes seja particularmente vincado. Foi procuradora-geral da República da Roménia com apenas 33 anos, liderou a seguir a Agência Nacional Anti-Corrupção da Roménia de onde foi despedida em 2013 pelo ministro da Justiça. A classe política romena não lhe perdoou as suas investigações e o Governo romeno opôs-se à sua indigitação para liderar a Procuradoria Europeia em 2019. Mas uma maioria clara do Parlamento Europeu não teve dúvidas em confirmar a nomeação, aprovada em sede do Conselho Europeu.

Talvez por tudo isto, Kovesi não hesita quando é questionada sobre o seu legado, quando está a um ano do final do seu mandato: “Deixar uma Procuradoria Europeia que seja uma das instituições mais independentes, eficientes e fortes da União Europeia”.

Em visita a Lisboa para inaugurar a nova sede da Procuradoria Europeia em Portugal, que se localiza agora nas instalações da antiga sede da Polícia Judiciária (PJ) na rua Gomes Freire, Laura Kovesi reuniu-se com os ministros Rita Alarcão Júdice e Joaquim Miranda Sarmento e com os seus “amigos” Amadeu Guerra (procurador-geral da República) e Luís Neves (diretor nacional da PJ). E não tem dúvidas em elogiar a qualidade e o profissionalismo dos procuradores e dos polícias portugueses, assim como a boa imagem que tem do funcionamento da Justiça portuguesa.

Em entrevista ao Observador, a procuradora-geral europeia confirma que os casos em investigação em Portugal (e na União Europeia) “explodiram”. A delegação portuguesa está a investigar 69 processos e as fraudes sob suspeita que podem chegar aos “868 milhões de euros em Portugal” — uma estimativa atualizada que inclui 2024 e que até ao final deste ano poderá subir para os mil milhões de euros. Kovesi diz também que há mais de “100 processos na Europa com conexões a Portugal” e tem consciência da grande sensibilidade que existe no nosso país para a fraude com fundos europeus, mas alerta que o problema é geral. “Não há um país limpo em termos de fraude com fundos europeus”, assegura. Por isso mesmo, solicitou às autoridades nacionais a alocação de mais dois procuradores delegados à equipa portuguesa.

Em termos gerais, a Procuradoria Europeia tem abertas 2.666 investigações a fraudes que poderão ter violado os interesses financeiros da União Europeia (o foco da sua actividade) em cerca de 24,8 mil milhões de euros — sendo que cerca de metade desse valor (cerca de 13,15 mil milhões) dizem respeito a fraude com IVA transfronteiriço. Laura Kovesi está preocupada com o incremento da actividade de grupos de crime organizado, nomeadamente chineses e russos, que têm apostado cada vez mais em operações de branqueamento de capitais que levam a fraudes muito significativas em sede de IVA. E alerta para o risco da segurança interna da União Europeia que tais actividades representam. Kovesi não exclui que os Estados chinês e russo estejam por detrás desses grupos de crime organizado.

A Procuradoria Europeia tinha 23 investigações abertas em Portugal em 2022. Qual é o balanço no final de 2024 em termos de investigações abertas e de ativos congelados?
O número de casos explodiu em Portugal. A delegação portuguesa da Procuradoria Europeia está a investigar possíveis fraudes que podem chegar, em termos de estimativa, a 868 milhões de euros até ao momento [inclui 2024 e 2025]. Até ao final do ano, esse número pode mesmo chegar a mil milhões de euros. Nós temos apenas seis procuradores delegados em Portugal. Pedi às autoridades portuguesas que aloquem mais dois procuradores delegados, para termos um total de oito magistrados. Porque temos de ser consistentes e continuar o nosso trabalho. Os colegas aqui em Portugal ajudam as investigações que são feitas nos outros Estados-membros. Por exemplo, temos na Alemanha, Itália e noutros Estados-membros mais de 100 processos com conexões a Portugal. Logo, o volume de atividades dos nossos colegas é muito elevado. É por isso que pedimos mais recursos, porque se não vamos colapsar e não queremos isso. E acho que esses números vão aumentar. Sempre disse que o nível de fraude estava subestimado.

É natural que o nível de deteção tenha aumentado apenas e só com a criação da Procuradoria Europeia.
É verdade. Mas também as prioridades mudaram. Quando se tem fraude muito significativa ao nível do IVA, no final, tem-se outro tipo de consequências. Aquilo que estamos a detetar é apenas a ponta do iceberg.

A Procuradoria-Geral da República (PGR) aqui em Portugal tem um think tank dedicado a vários temas, mas tem uma especial atenção à fraude com fundos europeus. Esse think tank tem criticado de forma assertiva o sistema de reporte de fraude que, em Portugal, assenta na Inspeção-Geral de Finanças. Por exemplo, um estudo académico mostrou que entre 2007 e 2021, apenas dois casos de fraude foram detectados e apenas 133 casos foram dados como suspeitos. Temos um longo caminho para fazer em Portugal e na Europa sobre este tema?
O nosso trabalho não é detectar, o nosso trabalho é investigar. Sem detecção, não há investigação. Sem investigação, não se consegue recuperar os fundos perdidos para a fraude. Por isso mesmo, tivemos [esta quarta-feira, dia 10 de setembro] uma boa reunião com a ministra da Justiça [Rita Alarcão Júdice] e num formato original. Na minha opinião, foi uma excelente ideia conhecermos a ministra da Justiça juntamente com o ministro das Finanças [Joaquim Miranda Sarmento] e o secretário de Estado Adjunto e da Administração Interna [Paulo Simões Ribeiro]. Foi uma boa oportunidade para explicarmos a mais-valia da Procuradoria Europeia e porque necessitamos de órgãos de polícia criminais, de inspetores tributários e de agentes das alfândegas para trabalhar nos processos da Procuradoria Europeia. Também discutimos com o ministro das Finanças que é preciso mudar um pouco a abordagem e entender que os meios administrativos não são suficientes para resolver esses este tipo de fenómeno.