As mãos e os braços responsáveis pelo cuidado diário vital para pessoas diagnosticadas com Alzheimer e outras neurodegenerações são majoritariamente femininos. Dentre os cuidadores, 86% são mulheres. É o que mostra um estudo recente publicado na Revista Brasileira de Psiquiatria, que também mapeou os custos financeiros associados ao tratamento da demência no Brasil.
Nesse cenário, os pesquisadores notaram que quanto mais grave a síndrome, maior o custo: no estágio inicial a família gasta a partir de R$ 5.513 (cotação atual), enquanto no estágio intermediário sobe para R$ 7.266,27 e no estágio avançado chega a R$ 8.690,73. E 73% dos custos recaem sobre os familiares mais próximos, como filhos e netas.
O trabalho indica que, por estágio de desenvolvimento do quadro, os custos indiretos — que se referem a perda de produtividade do cuidador, o tempo dedicado aos cuidados e o impacto na qualidade de vida tanto do paciente quanto da família — são de 78,5% (do total gasto) no estágio inicial, de 81,8% moderado e 72,9% no estágio avançado.
Quanto ao perfil das cuidadoras mulheres, a idade média é de 57,8 anos e, dentre o grupo, 29,3% têm entre 9 e 11 anos de escolaridade. O estudo, realizado em 17 municípios brasileiros em 2023, faz parte do Relatório Nacional sobre a Demência no Brasil (ReNaDe), feito com apoio do Ministério da Saúde.
Mulheres à frente do cuidado
Na família de Tamires Alves o cuidado é passado entre as mulheres há pelo menos duas gerações. Sua avó foi cuidadora em tempo integral de sua bisavó, diagnosticada com Alzheimer.
Ela, sua mãe, de 59 anos, e três tias (entre 56 e 64 anos) fazem rodízios no encargo de cuidar da sua avó — que convive com a doença desde 2005, e atualmente está em estágio avançado. Enquanto o tio, de 62 anos, colabora principalmente na parte financeira.
— Inicialmente, uma das minhas tias se afastou do trabalho e assumiu os cuidados da minha vó. Depois, quando ficou mais complicado, minha avó voltou pra casa dela, contratamos um cuidador fixo para os dias de semana e nos organizamos em um esquema de rodízio para cuidar dela no fim de semana — explica a biomédica e pesquisadora do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
Segundo Tamires, a preocupação principal é não sobrecarregar ninguém, visto que sua família acredita que sua avó passou por muitas dificuldades quando se tornou cuidadora em tempo integral.
— Só em ter vivido a experiência nos fins de semana pude ver como é algo difícil. Exige uma força mecânica do cuidador, e isso pode levar qualquer pessoa à exaustão física. Em apenas um dia de cuidados, é como se você tivesse batalhado em dez guerras — afirma a mulher de 35 anos, que também atua como Secretária Geral da Associação Brasileira de Alzheimer (Abraz) na Regional de São Paulo.
Vida pessoal em segundo plano
A presidente da Abraz, Celene Queiroz, afirma que, no Brasil, na maioria dos casos apenas uma mulher precisa lidar com a responsabilidade sozinha. E isso se deve às raízes machistas da sociedade.
— O cuidado é colocado como uma qualidade inerentemente feminina. Muitas mulheres são contaminadas por esse tipo de pensamento, por isso que geralmente elas entram na frente. São mulheres que abdicam da sua vida, dos seus sonhos, para cuidar — aponta a médica geriatra.
A psiquiatra Cleusa Pinheiro Ferri, pesquisadora do Hospital Alemão Oswaldo Cruz que coordenou o projeto do Relatório Nacional sobre a Demência no Brasil, argumenta que é mais uma evidência de como as mulheres são mais afetadas com sobrecarga de multitarefas.
— A visão social é de que é papel inteiramente da mulher de cuidar de todas as gerações. Seja filho, sobrinho, marido, pai e avô — acrescenta.
A expectativa de vida para pacientes diagnosticados com Alzheimer em estágio inicial pode chegar a 15 anos. Durante o período de cuidado, muitas mulheres desenvolvem ansiedade e depressão.
— As cuidadoras com parentesco próximo de quem recebeu o diagnóstico desenvolvem elas próprias condições prejudiciais para a saúde mental. Isso acontece, principalmente, porque ela deixa de ser, por exemplo, a “Joana” em sua vida pessoal e social, para ser “a filha do seu Alberto” em tempo integral — aponta.
Dessa forma, manter a rotina exaustiva em prol da saúde de um parente próximo pode custar a própria vida pessoal, que entra em segundo plano. E, como argumentam as pesquisadoras do estudo, muitas vezes isso significa abrir mão de alguma coisa para prosseguir na função de cuidador.
Roxana Reys, de 57 anos, ainda não descobrira o diagnóstico de Alzheimer da mãe, Maria Teresa Reyes, quando a idosa passou a morar com ela. Na época, a decisão foi tomada para que a idosa não morasse sozinha, pois seu irmão — que dividia uma casa com a mãe até aquele momento — iria se mudar.
Contudo, isso causou uma ruptura no então relacionamento de Roxana. A discordância sobre a mãe residir em sua casa gerou um atrito.
— Acabei me separando, porque para o meu ex-marido dividirmos a casa com a minha mãe não era uma coisa viável. Ele achava um absurdo — relata Roxana.
Atualmente cuidadora em tempo integral da mulher de 89 anos com Alzheimer avançado, ela divide a rotina entre trabalhar e cuidar de Maria Teresa.
— Como cuidadora e filha tenho em mente que a doença sempre pode piorar. Então, eu aproveito o tempo que passo com a minha mãe e vivo um dia após o outro. Mas atenta às nuances e mudanças. No geral, eu me limito, mas não me negligencio. Conheço muitas mulheres de outras famílias que vivem pelo cuidado e não fazem mais nada — explica.
Ainda que partam de uma iniciativa pessoal, os cuidados refletem um cenário global de surgimento de novos casos. Uma análise publicada na renomada revista científica The Lancet projeta que até o ano de 2050 o número de pessoas convivendo com demência triplique no país — e em todo o mundo.
— Tanto em nível municipal quanto federal existem iniciativas públicas incipientes de cuidados. Mas, na medida que a gente melhorar isso, também melhoramos, como consequência, a questão dos gastos que recaem em grande parte sobre as famílias e também da exaustão dos cuidadores que se vê atualmente — conclui Ferri.