“Uma coisa é não concordarmos com determinadas leis, temos divergências políticas grandes quanto à natureza da legislação que é aprovada, outra coisa é dizer que essa legislação é inconstitucional. Claro que, quando as coisas são confundidas, nós tenderemos a dizer que o uso que é feito das prerrogativas dos juízes e do tribunal são desvirtuadas mas isso não se resolve acabando com o tribunal evidentemente, resolve-se escolhendo melhor os juízes e aqui todos temos responsabilidades nessa matéria”.

Sabe quem disse isto? Antes de se deitar a adivinhar (ou a googlar), tome lá outra: “Não é preciso rever a Constituição (…), é preciso é bom senso”. E outra: “Como é que uma sociedade com transparência e maturidade democrática pode conferir tamanhos poderes a alguém que não foi escrutinado democraticamente?”

E mais esta: “Não é normal que os detentores do poder judicial façam um juízo político quando a sua função é fazer um juízo jurídico”. 

Sim: a última é fácil, é do primeiro-ministro Luís Montenegro no seu discurso na chamada “festa do Pontal”, referindo-se ao juízo de inconstitucionalidade do Tribunal Constitucional sobre a Lei dos estrangeiros. 

As outras declarações são de outro primeiro-ministro, igualmente do PSD, e em guerra aberta com o Tribunal Constitucional (TC): Pedro Passos Coelho. Fê-las em 2013 e 2014, algumas delas nos pontais, após sucessões de “chumbos” do TC a normas propostas pelo Governo ou pela maioria PSD/CDS, chumbos esses que, afiançou, corriam o risco de fazer o país “andar para trás” e chegaram a suscitar, no PSD, a formulação da hipótese de “sanções” aos magistrados desse tribunal quando “extravasassem” os seus poderes.

Este clima de guerra com o tribunal incluiu até as instituições europeias: em outubro de 2013, um responsável do Eurogrupo denominou os juízes de “ativistas” e um relatório da representação da Comissão Europeia em Lisboa levantou dúvidas sobre “a imparcialidade política do TC”, advertindo: “Qualquer ativismo político desta instituição pode ter graves consequências para o país.” Isto enquanto um analista citado pelo Financial Times certificava que o tribunal era visto pelos mercados como “quase comunista”

Gargalhada? Sem dúvida, mas, surpresa-surpresa, pouco diferente desta declaração de André Ventura: “Chumbar a lei dos estrangeiros não é compreensível e traduz um espírito de esquerda que se apoderou das instituições e contraria aquilo em que os portugueses votaram no dia 18 de maio”.

A ideia de que um Tribunal Constitucional não pode decidir contra aquilo que é a alegada vontade de uma dada maioria expressa pelo voto, ou contra as decisões de um governo com maioria (ou mesmo maioria absoluta), é, obviamente, um total absurdo: a função dos tribunais que cotejam as iniciativas legislativas com as constituições é precisamente a de servir de contra-peso, sendo-lhes conferido o poder de, ao avaliar se as decisões de uma determinada maioria estão de acordo com os princípios das leis fundamentais, obstar a essas mesmas “vontades”. São assim desenhados como derradeira fronteira de defesa dos direitos, liberdades e garantias, do Estado de direito e do próprio regime, impedindo aquilo que se denomina de “ditadura das maiorias”.

Por outro lado, é também óbvio que os tribunais constitucionais não são tribunais estritamente jurídicos, porque o texto que têm de interpretar é jurídico-político. E isso implica que — como aliás se nota nas decisões de todos os tribunais e não apenas deste — haja uma avaliação que se funda na mundividência, inclusive política, dos juízes. Contra isso, batatas — daí que escolher quem faz parte destes tribunais seja, como se tem confirmado nos casos dos EUA, Hungria, Polónia e etc, uma forma de reconfigurar regimes, operando golpes de Estado de secretaria em que a respetiva jurisprudência passa a estar totalmente alinhada com quem detém o poder político, tornando até desnecessárias revisões constitucionais.

Tem aliás muita piada que se tenha desatado a acusar — mais uma vez — uma parte dos juízes (a que chumbou a Lei de Estrangeiros) de “ativismo político” com base nas declarações de vencido de outros, quando uma dessas declarações, a da juíza Benedita Urbano, se inicia com uma diatribe contra o que denomina de “política de fronteiras abertas” (onde é que já ouvimos isso?) qualificando de “catastrófica” a “realidade socio-económica atual do país”. Super jurídico, hã?

De resto, um passeio por alguns acórdãos do TC permite constatar o quão postiça (ou ignara) é a indignação que alguns setores propalam com as alegadas “tomadas de posição ideológicas” dos juízes que chumbaram o diploma concertado entre AD e Chega. 

Veja-se, a título de exemplo, este primor de isenção jurídico-constitucional encontrado num voto de vencido num acórdão de 2006 versando interrupção de gravidez: “O prosseguimento da vida uterina não extingue a liberdade da mulher a manter um projeto de vida como expressão do livre desenvolvimento da sua personalidade, mas tão só, quando muito, a obriga a que adapte, para o futuro, o seu projeto de vida às novas circunstâncias, tal qual pode acontecer por força de muitas outras circunstâncias possíveis naturalisticamente, como, por exemplo, a doença, o desemprego, acidentes, etc.” Por outras palavras: não põe em causa a liberdade da mulher de decidir sobre o seu projeto de vida obrigarmo-la a ter um filho que não quer, é como se tivesse sido atropelada ou assim; tem de se conformar com o “azar” e pronto.

Também é curioso que quem se indigna com o facto de os juízes do TC contrariarem a “vontade do povo” expressa nas legislativas não se tenha incomodado — pelo contrário, festejou — com os sucessivos “chumbos”, por tecnicalidades, de diplomas que legalizavam a morte medicamente assistida, alteração legislativa que fora sufragada nos programas dos partidos que representavam maioria mais que absoluta do parlamento. É portanto muito conforme: se concordamos com os juízes podem ir contra o que se presume ser, a partir do resultado eleitoral, a vontade da maioria; se não concordamos, são “ativistas”.

Este tipo de discurso, que levanta a questão da “legitimidade democrática” dos juízes constitucionais e os acusa de querer fazer política contra a vontade do povo — passando, curiosamente, ao largo do facto de o pedido de fiscalização ter sido suscitado pelo PR —, aliado à nova configuração do parlamento, deve fazer-nos temer que esteja em preparação um golpe constitucional na senda daqueles a que assistimos noutras paragens. E que antes mesmo de uma alteração da Constituição (que o Chega nunca escondeu querer e que, recorde-se, o PSD de Passos, que era também o PSD de Montenegro, proclamou necessária e inclusive apresentou, nos idos de 2010), se avance para a nomeação, aí sim, de um TC de fação.

De modo que este episódio da Lei de Estrangeiros, tão aparatosamente feita com os pés (como até juízes que não a reputam de inconstitucional, caso do vice-presidente do TC Gonçalo de Almeida Ribeiro, reconhecem), pode ter sido apenas o início de uma nova fase da democracia portuguesa — aquela em que uma determinada maioria procurará certificar que nenhuma das suas decisões, seja quem for que esteja na Presidência da República, será obstaculizada pelo Palácio Ratton.