A urbanista Camila Ledesma, 40, não é fumante. “Mas em situações de estresse me pego levando os dedos à boca, como quem conduz o cigarro. Até puxo o ar.”

O gesto involuntário a inquietava. E então vieram o que lhe pareciam lembranças vívidas “de um tempo pretérito em que eu fumava, e muito”.

Via-se numa tenda de cor cáqui, com trajes de enfermeira. Neve em volta, bombas caindo a todo momento. “Um clima aterrorizante.”

Cuidava de um soldado que havia perdido as pernas. “O doutor sinalizou com a cabeça que ele não tinha mais jeito. Então, embebedei um pano com um líquido. Coloquei no nariz dele, que apagou em seguida.”

Camila foi um dos 402 brasileiros entrevistados para uma pesquisa feita pela UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora). O texto foi revisado por pares e publicado no The International Journal for the Psychology of Religion, referência no campo de religião e psicologia.

Os participantes foram recrutados por vários meios, como redes sociais e mídia, e então procurados pela universidade.

A Faculdade de Medicina da UFJF mantém o Nupes (Núcleo de Pesquisas em Espiritualidade e Saúde), que investiga desde 2007 a imbricação entre esses dois polos. O levantamento em questão serviu como tese de doutorado de uma das pesquisadoras, Sandra Maciel de Carvalho.

O intuito era entender o efeito que experiências similares à de Camila provocam na saúde mental. A ideia nunca foi provar se a reencarnação existe, e se recordações de vidas passadas, portanto, seriam factíveis, diz Carvalho. “Não tínhamos o objetivo de comprovar a veracidade factual das alegadas memórias, mas conhecer o perfil dessas pessoas e qual o impacto disse na vida delas.”

O que ela encontrou, ao compilar os dados, foram “níveis significativos de sintomas sugestivos de transtornos mentais comuns”. Quase metade da amostra (46%) apresentava um ou mais deles, como ansiedade e depressão. A média geral é bem mais baixa —estudo do Observatório da Saúde Pública, por exemplo, aponta que 27% brasileiros são patologicamente ansiosos, e 13% depressivos.

Um em cada quatro investigados pela UFJF relataram sinais de transtorno de estresse pós-traumático —caso dos pensamentos intrusivos, como flashes que insistem em voltar após um trauma. A título de comparação: em áreas urbanas como o Rio, acossadas por altos índices de violência, esse mal atingiu 3,5%, conforme estudo da UFRJ.

Sete em cada dez sondados pela universidade mineira acreditam ter uma fobia inexplicável desenvolvida na infância.

Uma mulher conta que, quando criança, entrava em pânico se ouvia barulho de avião. E gritava: “Corram!”, para em seguida correr para debaixo da cama. Ficava perplexa quando o avião simplesmente sumia do horizonte, sem explodir nada pelo caminho. Associou essa fobia a uma encarnação passada.

Formada em psicologia e doutora em saúde, a coordenadora da pesquisa afirma que “o sofrimento descrito nessas memórias, e o impacto causado em suas vidas”, foi o que mais lhe marcou. São memórias fartas em traições, assassinatos, suicídios, relacionamentos conturbados. “São vidas que, muito provavelmente, não seriam escolhidas para serem contadas por alguém que queira se vangloriar.”

O estudo não crava nem que haja uma base sobrenatural para esses relatos, nem os reduz a uma mera manifestação psicológica.

O psiquiatra Alexander Moreira-Almeida, diretor do Nupes e orientador da tese de doutorado, vê várias abordagens possíveis para o fenômeno. “Provavelmente nenhuma delas é totalmente verdadeira, explicando tudo. Como tudo na medicina e na vida, são vários fatores interligados.”

As tais memórias, segundo ele, “podem ser mecanismo de defesa psicológica”, já que “quando a pessoa está passando por problemas, ela quer encontrar um sentido no sofrimento”. Pode acontecer de ela inconscientemente projetar e criar uma falsa recordação de vida passada, diz.

Há relatos no levantamento de gente que, sem nunca ter tido contato com uma língua, já na primeira infância era fluente nela. Camila, que se visualizou como enfermeira de guerra, diz que certa vez escutou uma professora falando alemão e, mesmo sem contato prévio com o idioma, entendeu as palavras.

O estudo de Carvalho também detectou que taxas mais altas de religiosidade e espiritualidade agem como blindagem para efeitos lesivos na saúde mental —em março, o Conselho Federal de Medicina criou a Comissão de Saúde e Espiritualidade para explorar pesquisas que apontam influência positiva da fé em tratamentos e bem-estar em geral.

A urbanista era católica, mas há uma década mudou sua orientação religiosa para o espiritismo. Daí lidar bem, hoje, com o que acredita ser um acesso à pessoa que já foi antes de encarnar como uma doutoranda em geografia que mora em Mato Grosso do Sul.

“Olha, devido à minha fé, essa questão não é um tabu para mim. Foi difícil quando era criança. Minha mãe tinha muito medo, me levou em benzedeira, padre, fez novena, porque eu era a menininha que chorava a noite toda. Fui uma criança de poucos amigos.”

No perfil médio dos entrevistados, predominavam mulheres (79%), gente com curso superior (68%) e da fé espírita (54,5%). A maior parte das ditas memórias (82%) surgiu de forma espontânea, a partir da idade média de 19,9 anos, não sendo induzida por terapias de regressão ou hipnose.

Tânia Alves Ferraz, diretora do corpo clínico do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP (Universidade de São Paulo), reforça que “memórias não são necessariamente factuais” e vêm embaladas em emoções e contextos marcantes. É muito provável, ela exemplifica, que você saiba onde estava quando a Alemanha goleou por 7 a 1 o Brasil na Copa de 2014.

Ferraz explica que as memórias criadas são “uma lembrança distorcida, porque a memória é uma coisa reconstruída continuamente”, que pode misturar elementos reais com impressões externas —como misturar reminiscências de uma viagem com um filme a que se assistiu.

Portanto, o interessante no estudo do Nupes não é discernir o que é fato e o que é fantasia, mas dimensionar o sofrimento emocional que essa lembrança produz, diz a psiquiatra.