Saúde mental. Meritocracia. Feminismo. Equidade. Justiça Social. Antibullying. Inclusão. Liberdade. Todos estes termos pertencem às palavras de ordem dos actuais jovens universitários. Uma geração que denuncia microagressões com vigor, combate com enorme fervor teórico a opressão clássica e tradicional e não pede, mas exige aos gritos como um “Sr. Doutor” na praxe, uma sociedade segura, livre e respeitosa. A esta palavra acrescento uma outra – hipocrisia. É a geração que perpetua, sem pestanejar, aceitando e dogmatizando, sem sequer pensar em duvidar, a prática mais retrógrada, autoritária e opressora da vida académica: a praxe.

Sim, a praxe. Esse ritual místico, integrador por decreto e não pela prática, que insiste em sobreviver à custa da humilhação, da hierarquização tóxica, das coerções veladas e de violência simbólica (às vezes, literal). A incoerência é mais do que ilógica. Os mesmos que partilham posts contra a tradição da tourada e do machismo, que fazem congressos a promover a importância da saúde mental nos estudantes universitários, que defendem constantemente a inclusão de todos, são exactamente os mesmos que no momento imediatamente a seguir vestem uma capa negra, alinham caloiros em filas aos gritos, obrigando-os a rastejar, a calar-se e a serem subservientes a qualquer ordem superior em nome da grande e majestosa “tradição académica”. Em nome da tradição, a palavra que em todos os outros contextos tanto repugna qualquer jovem – excepto na praxe. Ou não querem perceber o paradoxo, ou não pararam para pensar, ou fazem de conta.

Os defensores mais ingénuos e irreflectidos repetem o mantra: “Só participas se quiseres”. Mas quando a pertença social de um estudante recém-chegado depende, em grande parte, da sua participação nesse ritual, a escolha deixa de ser livre e passa a ser veladamente coerciva. Ninguém quer ser o “anti-social”, o “do contra”. Assim, muitos acabam por aceitar práticas com as quais não concordam e não gostam, apenas para evitar o isolamento – uma forma subtil, porém muito eficaz, de violência psicológica. A liberdade de dizer “não”, neste caso, é tão real quanto a espontaneidade de uma coreografia militar.

O que deveria ser uma celebração da entrada na vida académica torna-se, frequentemente, num teatro de resignação e vassalagem. E o mais trágico é ver jovens que se dizem contra o autoritarismo e as hierarquias de poder assumirem, com um brilho nos olhos, o papel de verdugos. Afinal, a praxe oferece algo raro aos oprimidos do mundo real: a chance de mandar em alguém. É essa a verdadeira função da praxe: simular poder. Dar a quem nunca teve autoridade, ou sequer maturidade, a ilusão de dominância, através da submissão ritualizada de caloiros. E tudo isso com o beneplácito de uma estrutura universitária que, na melhor das hipóteses, finge que não vê. Na pior, participa com orgulho.

A praxe é um dogma inquestionável que ninguém se deve atrever a pôr em causa. Há uma cultura de impunidade e de “não mexer no que já está instituído”, da mesma forma que ocorre em construções fascistas. Ninguém pode questionar as intenções do “Sr. Doutor” e deve obedecer a tudo o que este diz, caso contrário será punido: exactamente como num regime ditatorial. A geração que tanto preza a democracia e a liberdade teima em prosseguir com um constructo destes.

Não precisam de acontecer novas Praias do Meco, mortes no Minho, em Famalicão ou em Beja, suicídios ligados à praxe e humilhações e agressões que passem nos telejornais para se discutir este assunto que afecta diariamente a vida de milhares de estudantes universitários, mesmo que o impacto que tem em cada um deles não seja publicitado. Precisamente para prevenir novas destas tragédias anunciadas deve ser dado mediatismo ao tema agora e deve-se agir já.

A geração da “consciência crítica” precisa, com urgência, de se olhar bem ao espelho. De nada serve criticar e querer mudar se se reproduzem os mesmos mecanismos de poder que tanto se julgam. É fácil denunciar o sistema lá fora. Difícil é questionar os rituais a que nos agarramos para nos sentirmos parte de algo, mesmo que esse algo esteja podre. Caso contrário, tornamo-nos e somos precisamente o que tão fervorosamente repudiamos, sem notar por isso.

Chegou a hora de assumir: ou se é contra todas as formas de opressão, até as disfarçadas de diversão e inclusão, ou somos apenas mais uma geração de hipócritas bem-intencionados.