Durante um jogo de futebol, o rectângulo colorido surge no ecrã. Um lembrete para quem ainda não apostou no resultado se apressar a fazê-lo.
Não é preciso estar a ver desporto. A televisão e a Internet estão inundadas de anúncios frenéticos, muitas vezes protagonizados por figuras públicas que nunca antes tínhamos associado ao jogo. Nas cidades, os outdoors pintam-se de cores apelativas e figuras simpáticas que podem fazer os mais ingénuos acreditar que, no jogo, é só sorrisos. Mas a psiquiatra Inês Homem de Melo sabe que não é assim.
Ao seu consultório chegam cada vez mais jovens viciados no jogo, principalmente em apostas desportivas — “uma espécie de lobo com pele de cordeiro”, afiança a psiquiatra, que integra o Instituto para os Comportamentos Aditivos e Dependências (ICAD). “O que está por trás é o desporto, que é uma parte estruturante da cultura ocidental, e ao juntarmos um vício a uma coisa saudável estamos a embrulhar o lobo em pele de cordeiro”, continua.
Tudo o que dantes requeria presença física num casino ou num quiosque pode agora ser feito a qualquer hora, sem sair do sofá. E há uma indústria que quer aproveitar isso. Betclic, Bwin, ESCOnline, Pokestars, Casino Portugal, Casino Solverde, Nossa Aposta, Placard.pt, Luckia, 888, Betano, Moosh, Betway, Versus, Bacanaplay, LeBull, GoldenPark e Yobingo são as entidades autorizadas a explorar jogos e apostas online em Portugal. Quer isso dizer que estão sujeitas ao cumprimento das normas legais relacionadas com o jogo e com a publicidade. Mas o que dizem elas? São suficientes?
O artigo 21.º do Código da Publicidade dita que a publicidade a jogos e apostas deve ser feita “de forma socialmente responsável”, protegendo menores e outros grupos vulneráveis. Refere que não deve encorajar o jogo, não deve sugerir a ideia de ganho fácil, e não deve ser apresentada “no interior de escolas ou outras infra-estruturas destinadas à frequência de menores”, em eventos que a eles se destinem ou onde sejam os intervenientes principais.
O responsável por garantir que as normas legais são cumpridas, o Serviço de Regulação e Inspecção do Jogo (SRIJ), apresenta também um manual de boas práticas para a publicidade de jogos e apostas, e recomenda, entre outras, que não haja lugar para ela na televisão e rádio entre as 7h e as 22h30, nem 30 minutos antes ou após um programa dedicado a crianças. Mas e se for durante um jogo de futebol, que pode começar às 20h e ter crianças a assistir? Já lá vamos.
Este manual de boas práticas é apenas isso: um manual. “Não pode haver qualquer tipo de sanção com base [nele]”, explica João Pacheco de Amorim, sócio fundador da PA Advogados e professor na Faculdade de Direito da Universidade do Porto. O advogado considera até que, “apesar da boa vontade”, este manual pode ter “um efeito algo pernicioso”, uma vez que “torna indiscutível que [o que lá está] não é vinculativo”.
E vai mais longe: “Tudo o que está nas leis e no manual de boas práticas é conversa. Só há uma medida realmente eficaz na era em que estamos, de apostas online, que é proibir toda a publicidade. Ou até uma coisa semelhante ao tabaco, uma espécie de publicidade contrária que lembrasse que o jogo arruína as pessoas”, defende.
É sobre isto que o Parlamento vai falar esta sexta-feira, 26 de Setembro, depois de o Livre ter proposto debater as “práticas predatórias na promoção do jogo” e mecanismos de combate ao jogo ilegal. Deu entrada a nove iniciativas — sete projectos de lei e dois de resolução — que querem impor, entre outras, limitações à publicidade de jogos online, proibir o patrocínio de eventos e competições por entidades que explorem jogos e apostas (a liga de futebol portuguesa chama-se Liga Portugal Betclic, por exemplo), e quer também que passe a ser obrigatório incluir advertências sobre o potencial aditivo do jogo em todos os jogos.
O advogado Gonçalo Cerejeira Namora, sócio da Cerejeira Namora, Marinho Falcão, considera que “limitações tão severas da publicidade” podem ser “quase um ataque a um sector”. “A publicidade só é permitida a operadores regulados. [Limitá-la] pode fazer-nos cair num cenário em que não há uma destrinça entre o que é um operador licenciado, que tem de cumprir todas as regras, e um operador ilegal. Passamos a colocá-los no mesmo saco”, defende.
Gonçalo Cerejeira Namora considera que os operadores já têm “um crivo demasiado apertado” e essas restrições permitem mitigar os efeitos da publicidade. Voltando ao jogo de futebol que os menores estão a ver e onde há publicidade a casas de apostas: a lei vai fazer com que eles esbarrem à entrada, diz. “Por muita publicidade que veja, um menor nunca se consegue registar num operador licenciado.”
Mas eles estão a jogar. O Estudo sobre os Comportamentos de Consumo de Álcool, Tabaco, Drogas e outros Comportamentos Aditivos e Dependências de 2024 reporta que 18% dos jovens entre os 13 e os 18 anos jogaram a dinheiro no último ano, com destaque para lotarias, apostas desportivas e jogos de cartas/dados. Seja porque pedem o cartão de cidadão a alguém maior de idade, seja porque se viram para operadores ilegais para o fazer, há formas de alimentar o vício.
Nas consultas de Inês Homem de Melo, a publicidade é mencionada “com muita angústia” e descrita como um “gatilho”. “É como quando uma pessoa deixou de beber álcool e vem aquele amigo e diz: ‘Então, não bebes?’”, refere. Para quem está em “abstinência precoce”, ou seja, deixou de jogar há pouco tempo, é difícil lutar contra o ímpeto. “Os pacientes dizem sentirem-se aflitos e tentados.”
As estratégias usadas nos anúncios são, para a psiquiatra, “perversas”. “Houve um slogan que dizia: ‘O futebol não dorme e, com o mundial no Placard, tu também não.’ Só dizer a alguém para não dormir é péssimo. Mas [neste caso] estão a usar o sintoma do vício [não dormir] para publicitar o próprio vício.”
A participação de figuras públicas ou influencers nestes anúncios traz também uma nova dimensão. O facto de estarem “em posições de poder e com dinheiro” pode provocar uma “distorção cognitiva” em pessoas vulneráveis, alerta: “Quando alguém muito abastado está a dizer que joga, pode haver quem ache que aquela é uma forma de enriquecer. E isto é perigoso.”
Inês Homem de Melo é psiquiatra especializada em tratamento do vício do jogo
Paulo Pimenta
Outra das formas de aliciar a jogar é enviar directamente para o email dos jogadores — principalmente se não jogarem há algum tempo — um bónus para gastar. Uma prática “sem escrúpulos”, considera João Pacheco de Amorim, que defende que a actividade do jogo “é, em si, predatória”.
Sobre as práticas publicitárias das entidades licenciadas, o SRIJ refere que “foram detectadas e recebidas algumas participações sobre campanhas publicitárias em que são apontadas desconformidades ou desadequação de alguns dos seus conteúdos”, sem revelar a quais se refere. Quando essas situações são detectadas, o SRIJ garante que “entra em contacto com as entidades exploradoras” e que as mesmas, “sem excepção, têm acatado as orientações transmitidas”. Considera, por isso, que, “no cômputo geral”, existe “uma preocupação de cumprimento dos normativos vigentes”.
João Pacheco de Amorim corrobora: “Ninguém está a incumprir. O defeito é da lei. Estamos a confiar que o lobo vai tomar conta do rebanho.”
Porque é que o jogo é tão viciante?
“Em qualquer tipo de aposta, quando pomos o dinheiro e ficamos à espera do resultado, essa expectativa traduz-se no cérebro como um aumento da dopamina”, enquadra Inês Homem de Melo. O aumento da dopamina pode ser tanto maior quanto melhor estiver desenhado o jogo. Quem o faz sabe disso — e trabalha para os tornar cada vez mais adictivos.
Um exemplo: “Nas slot machines, se o prémio estiver dependente de saírem quatro figuras iguais, é mais viciante se sair a sequência cereja-cereja-cereja-pêra, do que sair cereja-pêra-cereja-cereja. É o chamado fenómeno near miss: o jogador, em vez de pensar que perdeu, vai pensar que quase ganhou.”
Outro factor importante para o aumento da dopamina é a rapidez. Quanto mais rápido o momento entre aposta e resultado, mais viciante. Slot machine e raspadinhas são vencedoras neste campeonato, mas as apostas já perceberam, e não querem ficar atrás. Além da aposta lenta, que quer acertar no resultado final (no caso de um jogo de futebol é preciso esperar 90 minutos), podem ser feitas apostas que diminuem esse tempo de expectativa: faltas, cartões, cantos, remates ou golos marcados a cada 15 minutos. É “transformar o desporto numa slot machine”.
O futebol é rei, mas rapidamente deixa de ser suficiente para quem quer apostar mais. Passa-se para o ténis, basquetebol, snooker, ténis de mesa e até vólei de praia. “A motivação não é ver o jogo. A pessoa até pode dizer que gosta de ver desporto, mas está a apostar em modalidades que nunca na vida mostrou interesse. Ninguém acredita nisso.”
A psiquiatra alerta: “Antes de chover, chuvisca. Nenhum jogador começa a jogar com a intenção de se tornar um jogador patológico. Quanto mais pessoas metermos neste caminho, mais pessoas saem como patológicos.”
E as indústrias estão a falar para faixas etárias cada vez mais jovens. Nos videojogos dirigidos a crianças e adolescentes, começa a ser introduzido o jogo de azar através de “cofres” que é preciso pagar para abrir. Lá dentro, “pode estar uma funcionalidade muito boa ou uma fraquinha, quem compra não sabe o que vai obter”. “Isto é puro gambling. O cérebro humano é tanto mais impulsivo quanto mais jovem for, e aqueles cérebros não estão preparados para aquilo. Pode parecer ridículo, mas é o mesmo que introduzir o gambling numa Barbie.”