A juíza do julgamento da Operação Marquês recusou esta segunda-feira o pedido da defesa de Ricardo Salgado para extinguir ou suspender o processo contra o ex-presidente do BES, em função do reconhecimento legal do seu estatuto de maior acompanhado, proferido pelo tribunal de Cascais devido à doença de Alzheimer que lhe foi diagnosticada.

Num despacho a que o Observador teve acesso, Susana Seca lembrou que já se tinha pronunciado em junho — ainda antes do início do julgamento — sobre um pedido semelhante, que terminou com a conclusão de “absoluta falta de fundamento legal”. Sublinhou também que não é a recente decisão do tribunal de Cascais em conceder aquele estatuto que vem alterar a decisão de manter o procedimento criminal em relação ao ex-banqueiro.

A atribuição do estatuto de maior acompanhado, assente num diagnóstico de demência, não tem qualquer efeito impeditivo do prosseguimento do processo penal contra o Arguido“, escreveu a magistrada que preside ao coletivo do julgamento da Operação Marquês.

A defesa de Ricardo Salgado, a cargo dos advogados Francisco Proença de Carvalho e Adriano Squilacce, argumentava que o estatuto de maior acompanhado — que certificou que o ex-presidente do Grupo Espírito Santo está dependente de terceiros para atividades do dia a dia e que a sua incapacidade produzia efeitos desde 1 de janeiro de 2019 — inviabilizava o seu direito a defender-se plenamente. Porém, a juíza reiterou que as “consequências emergentes da sentença de acompanhamento não extravasam o plano” do processo civil para o processo penal.

“Num caso trata-se de um julgamento penal e noutro foi decidida uma questão de personalidade e capacidade jurídica”, referiu Susana Seca, reiterando: “O acompanhamento constitui uma forma de proteção do arguido  Contudo, essa proteção não limita a liberdade de atuação ou de declaração do arguido no processo penal.”

Entre os argumentos invocados pela defesa do ex-banqueiro estava também uma suposta necessidade de aplicação de um regulamento europeu que “prevê o arquivamento por demência”. Todavia, a juíza esclareceu que essa premissa está ainda sujeita ao direito interno do respetivo estado-membro da União Europeia, ao notar que a disposição legal “não impõe o arquivamento, mas condiciona-o ao direito interno, demonstrando a posição de abstenção do legislador europeu”.

Considerando que este regulamento “não exerce qualquer efeito” sobre o processo, Susana Seca foi taxativa: “Indefere-se o requerimento para extinção ou, subsidiariamente, a suspensão do presente processo quanto ao arguido Ricardo Salgado”.

Ricardo Salgado responde por 11 crimes no processo Operação Marquês: três de corrupção e oito de branqueamento de capitais.

Além deste requerimento, a juíza Susana Seca rejeitou também a existência de uma nulidade insanável alegada em audiência de julgamento pela defesa de José Sócrates sobre uma suposta falta de representação legal do ex-banqueiro no processo por força do estatuto de maior acompanhado.

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Tal como tinha feito no processo Operação Marquês, os advogados de Ricardo Salgado tinham igualmente suscitado no julgamento do processo do BES a extinção do procedimento criminal contra o ex-banqueiro e, se tal não se concretizasse, que o mesmo fosse em alternativa suspenso. E tal como fez a juíza Susana Seca no processo Marquês, também a juíza Helena Susano — que preside ao coletivo que aprecia o processo do BES — rejeitou o requerimento.

Helena Susano frisou “que a matéria ora suscitada não é nova na sua substância”, pois a mesma ideia já constava da contestação apresentada pela defesa do arguido antes do julgamento.

De acordo com o despacho de sexta-feira, avançado esta segunda-feira pelo CM e a que o Observador teve igualmente acesso, a magistrada defendeu que as consequências do reconhecimento do estatuto de maior acompanhado pelo Juízo Local Cível de Cascais, no passado mês de julho, “não extravasam o plano civilístico”. Ou seja, não têm reflexos sobre o processo penal em curso contra o ex-banqueiro, “salvo no que respeita a uma eventual caducidade do mandato” dos seus advogados.

Para a magistrada, “não pode a sentença de acompanhamento qualificar-se como um facto (…) juridicamente relevante para as finalidades extintivas ou suspensivas do procedimento criminal”. Mais, Helena Susano defendeu que uma decisão neste sentido não viola caso julgado.

Quanto à invocação de um acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra no qual um processo foi travado contra um outro arguido por anomalia psíquica declarada posteriormente à prática dos factos, a juíza salientou que essa jurisprudência “não é desconhecida” do tribunal. Porém, deixou também críticas implícitas à defesa do ex-banqueiro por considerar que omite jurisprudência da Relação de Coimbra e da Relação de Lisboa que contraria os argumentos dos advogados de Salgado (sendo o acórdão da Relação de Lisboa sobre um recurso do próprio ex-presidente do BES no processo EDP/Manuel Pinho).

Já sobre a questão do regulamento europeu, Helena Susano usou a mesma expressão que viria a ser utilizada por Susana Seca, palavra por palavra, ao considerar que esse quadro legal expressava “a posição de abstenção do legislador europeu”.

Contactada pelo Observador, a defesa de Ricardo Salgado já expressou intenção de recorrer destas duas decisões.

À margem desta decisão, a juíza Helena Susano pronunciou-se ainda sobre a representação da sociedade arguida ES Irmãos, SGPS, S.A., que, para efeitos processuais, continuava até agora a ser representada por Ricardo Salgado.

A sociedade foi constituída arguida apenas em junho de 2020, já em data posterior aos efeitos reconhecidos pelo estatuto de maior acompanhado, mas o despacho enfatizou que Ricardo Salgado ainda não apresentava os sintomas que levaram em junho o tribunal de Cascais a avançar com o reconhecimento do estatuto. “Não existe qualquer correspondência com a situação de facto descrita pela arguida”, referiu, acrescentando que o ex-banqueiro “apenas viria invocar nos próprios autos uma situação de compromisso de faculdades cognitivas em momento muito posterior ao da constituição de arguido”.

No entanto, como não há mais administradores vivos além de Ricardo Salgado, e face à doença de Alzheimer que o impede de representar e decidir por terceiros, a juíza indicou que é preciso nomear “outra pessoa para as funções de representante processual da arguida, podendo tratar-se do administrador de insolvência da arguida Espírito Santo Irmãos SGPS S.A.”

Ricardo Salgado enfrenta uma condenação a oito anos de prisão no processo que tinha sido separado da Operação Marquês, além de uma outra pena de seis anos e três meses no processo EDP/Manuel Pinho, estando as duas decisões a ser ainda contestadas em recursos.

(Notícia atualizada às 17h35)