Era um padrão bem definido até agora: quando se chegava à meia-idade, muitas eram as pessoas que sentiam um aumento dos níveis de stress, de ansiedade ou depressão. Os cientistas chamam-lhe a “lomba da infelicidade”: ia havendo um aumento da sensação de desespero com a idade, que atingia o seu pico na meia-idade (entre os 40 e os 60 anos) e depois melhorava com o passar dos anos. Mas essa tendência está a desaparecer e a sensação de infelicidade surge cada vez mais cedo.
E não está a desaparecer porque as pessoas na meia-idade se sentem melhor, mas porque há uma deterioração da saúde mental das gerações mais novas que faz com que estes sintomas surjam cada vez mais cedo. “Esta é uma grande mudança em relação ao passado, em que o mal-estar mental atingia o seu pico na meia-idade”, explicam os autores do estudo em que são apresentadas estas conclusões, publicado recentemente na revista Plos One. “A nossa preocupação é que, hoje, existe uma crise de saúde mental séria entre os mais novos que precisa de ser resolvida.”
“Devíamos agir agora para prevenir as gerações futuras de jovens de sofrerem desta forma”, diz ainda ao P3 um dos três autores do estudo, Alex Bryson, que é investigador no Instituto de Investigação Social da University College London.
Se tem havido uma maior exposição a questões de saúde mental e redução do estigma, a verdade é que não houve um grande aumento naquilo que é o acesso aos serviços de saúde mental
Miguel Ricou
Pela primeira vez, este estudo mostra que “a lomba da infelicidade desapareceu por todo o mundo” e que o aumento desta sensação de mal-estar mental nos mais novos significa que “a infelicidade está agora a aumentar de forma monótona ao longo da vida”.
O estudo foi feito com base nas respostas de mais de dez milhões de adultos nos Estados Unidos (inquiridos entre 1993 e 2024), de mais de 40 mil famílias no Reino Unido (entre 2009 e 2023) e ainda através dos dados de quase dois milhões de pessoas de 44 países por todo o mundo (Portugal não está incluído).
Ainda assim, Miguel Ricou, presidente do Conselho de Especialidade de Psicologia Clínica e da Saúde da Ordem dos Psicólogos Portugueses, diz que esta “lomba” também se verificava em Portugal.
Quais as razões?
“É importante percebermos que estas gerações mais recentes têm vivido em crises sucessivas”, afirma o psicólogo Miguel Ricou, que não esteve envolvido no estudo. E dá como exemplo a crise que começou em 2008, “que no fundo nunca ultrapassámos de forma total e absoluta porque depois vão surgindo outras crises, como a pandemia e agora a guerra”.
No caso de Portugal, há ainda “dificuldade em termos de acesso à habitação e salários baixos”. As expectativas de que conseguiriam alcançar os bens e marcos conseguidos por gerações anteriores podem fazer surgir sentimentos de culpa, incapacidade ou insuficiência – além de expectativas goradas.
Quanto à deterioração da saúde mental dos mais novos, Miguel Ricou pede cuidado para não o afirmar de “forma taxativa”, já que há factores mais benignos e mais negativos para o explicar. Por exemplo: hoje, há uma maior facilidade em falar de questões de saúde mental, considera. “Antes, talvez fosse mais difícil dizer que se sentiam depressivos ou ansiosos. O discurso hoje é muito mais claro, com muito menos estigma e muito menos dificuldade.”
Nos aspectos mais negativos, a pandemia “criou um grande isolamento social”, a que se juntam os desafios da tecnologia, dos telemóveis e das redes sociais, que podem gerar mais isolamento, comparações, frustrações e até uma maior dificuldade de adaptação. E mais: “Se tem havido uma maior exposição a questões de saúde mental e redução do estigma, a verdade é que não houve um grande aumento naquilo que é o acesso aos serviços de saúde mental”, afirma o presidente do Conselho de Especialidade de Psicologia Clínica e da Saúde da Ordem dos Psicólogos Portugueses.
Os autores do estudo não conseguem identificar ao certo quais as razões para este declínio da saúde mental, mas apontam algumas das mesmas justificações: a pandemia é uma delas, podendo ser apenas uma parte que “potenciou tendências que já existiam”. Este declínio também pode estar associado às expectativas dos mais novos, que enfrentam “condições mais difíceis no acesso a habitação e ao mercado de trabalho”, lê-se no estudo. Pode ainda haver marcas da ferida deixada pela Grande Recessão.
Os cientistas deixam ainda outras possíveis explicações: a escassez de recursos de saúde mental disponíveis para tratar estas condições e o aumento do uso de smartphones e redes sociais, incluindo a forma como “tiveram impacto nas percepções que os mais novos têm de si mesmos e das suas vidas”. A comparação com outras pessoas pode resultar numa maior insatisfação com a sua própria vida, referem os autores, tal como ter conhecimento da desigualdade salarial pode levar a uma insatisfação laboral.
Mulheres mais novas são as mais afectadas
Vamos a números. No caso dos Estados Unidos, o aumento da sensação de desespero desde 1993 “nos mais jovens e em geral, sobretudo entre jovens mulheres, é notável”, lê-se no estudo. No Reino Unido, a sensação de desespero nas mulheres jovens passou de 4,4% em 2009 para 12,7% em 2021 (no caso dos homens passou de 2,3% para 6,4%). Estes níveis também aumentaram nas faixas etárias mais avançadas, “mas o aumento era menor do que nos mais jovens”.
O sentimento de desespero era avaliado por perguntas que avaliavam os níveis de stress, depressão, problemas com emoções ou relatos de que a sua saúde mental não estava boa nos últimos dias.
Isto também é visível quando se analisam os dados de ansiedade em específico. No Reino Unido, houve um “aumento geral de ansiedade de 2011 para 2021, assim como aumentos significativos para as jovens mulheres com menos de 25 anos”.
Os dados nos Estados Unidos foram recolhidos através do Sistema de Vigilância de Factores de Risco Comportamentais (BRFSS) e do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC), que faz mais de 400 mil entrevistas a adultos todos os anos. No caso do Reino Unido, foram analisados os dados da Sondagem Longitudinal de Famílias (UKHLS).
Os dados britânicos de 2009/2010 mostravam que 4,6% dos inquiridos diziam sentir-se desesperados, havendo um aumento para 8,1% nos anos de 2022/2023. Já os dados de 44 países (incluindo Reino Unido e Estados Unidos) foram recolhidos no inquérito Global Minds, que analisava sensações de desconforto, medo, ansiedade e pensamentos suicidas entre os anos de 2020 e 2025. Os cientistas usaram os dados de países que tinham mais de dez mil entradas, analisando os dados de países do Médio Oriente, África, América Latina, Ásia, Europa e países anglófonos.
Nessa amostra global, os cientistas notaram a mesma tendência, referindo que a “lomba da infelicidade” tinha deixado de existir nos anos mais recentes e que “a saúde mental das mulheres é pior do que a dos homens”. A “lomba da infelicidade” tinha sido descrita em 2008 e mostrava que os mais novos e os mais velhos relatavam uma maior satisfação com a vida, sendo menor na meia-idade – o que já não corresponde à realidade.
Ao P3, o autor Alex Bryson diz que já sabiam que a deterioração da saúde mental estava a aumentar nos mais jovens no Reino Unido e nos EUA, mas ficaram “surpreendidos” com estas mudanças no perfil de idade e por “essas mudanças serem evidentes em vários países”. Ainda assim, ressalva que estas evidências eram “mais fortes em países anglófonos desenvolvidos”.
O que se pode fazer?
Para combater esta tendência, Miguel Ricou defende que devemos continuar a fazer este “caminho de literacia em saúde mental” e a diminuir o estigma e a procura de ajuda. Sem esquecer que, “se não aumentarmos a resposta, teremos sempre maior dificuldade”. É importante discutir, trabalhar e compreender porque é que as pessoas (e, sobretudo, os jovens) têm dificuldades e perceber como as podem ultrapassar. No fundo, “transformar isto a nosso favor, para conseguirmos que estas pessoas que passam estas dificuldades mais cedo também consigam desenvolver as competências necessárias de resolução de problemas para depois serem pessoas que até podem vir a estar mais preparadas para conseguir responder aos diferentes desafios que o mundo lhes vai trazendo”.
“O que a literatura mostra é que, conforme vamos envelhecendo, vamos ganhando maiores capacidades e estratégias de auto-regulação para conseguir lidar melhor com as dificuldades”, afirma.
Miguel Ricou diz que não devemos olhar para estes dados de forma dramática. A juventude, diz, não está perdida, nem é mais frágil. “O que eu diria é que o mundo é bastante mais desafiante hoje em dia.” Por isso, é preciso “criar mecanismos que permitam que estas pessoas possam ter acesso a profissionais que estejam preparados para os conseguir compreender naquilo que são as suas particularidades.”