“A busca por um padrão de beleza está ligada ao desejo de controle de um corpo em transformação rápida, em um mundo em que as formas de demonstrar poder são escassas”, diz psiquiatra especializado em adolescentes Gustavo Estanislau

Já pensou o seu corpo mudar tanto e tão rapidamente que você passa a nem se reconhecer quando se olha no espelho? Parece roteiro de filme de ficção científica ou de terror, mas se você tem mais de 20 anos, pode até não lembrar mais, mas isso já aconteceu a você.

Quando a puberdade bate, são novas formas, novos pelos, novos cheiros. Isso pode gerar ansiedade e uma série de outros sintomas, como explica o psiquiatra especializado em adolescentes Gustavo Estanislau, autor dos livros “Dilema na Educação” (Autêntica, 2023).

“O pensamento é: o que eu posso fazer para lidar com esse mapa corporal que está sempre se modificando? Os jovens tentam controlar essas mudanças do corpo e pensam que entrar em um padrão pode ser um caminho. E aí começam as obsessões”, afirma na entrevista a Gama.

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Com o espelho no centro de tudo e as redes sociais como reforço das obsessões, os jovens têm buscado muitos músculos, apoiados pela indústria fitness e a de suplementos; uma magreza excessiva, que voltou com tudo na era das canetas emagrecedoras como Munjaro e Ozempic; e uma “extreme make-over” com todo tipo de produto de maquiagem. Chega a ser um hiperfoco, algo que desloca a energia mental que poderia ser investida no esporte, na dança, na escola.

“A grande questão é até onde isso é divertido, um hobby — como quando as meninas gostam de esmaltes, pintam as unhas e se divertem sem sofrimento —, ou é algo que deixa de lado o que é importante para a vida”, diz na entrevista que você lê abaixo.

Os jovens tentam controlar as mudanças pelas quais estão passando, o corpo, e entrar em um padrão parece um caminho

Os três pilares da aparência hoje são magreza, maquiagem e músculos

“Vemos os efeitos colaterais dessas medicações que trazem emagrecimento, como náuseas, tontura e a perda de peso em um corpo que já era saudável. A maquiagem tem aparecido como um hiperfoco de algumas crianças e adolescentes, que desloca a energia mental que poderia ser investida no esporte, na dança, na escola. A grande questão é até onde isso é divertido, um hobby — como quando as meninas gostam de esmaltes, pintam as unhas e se divertem sem sofrimento —, ou é algo que deixa de lado o que é importante para a vida.

Com os meninos, vejo um uso descabido de energéticos como pré-treino. Muitos têm arginina, que gera um formigamento no corpo e pode gerar crises de ansiedade. Tive pelo menos três pacientes que tiveram episódios nos últimos dois anos. Também vejo o uso, sem orientação, de whey protein, que pode levar à acne e, consequentemente, a medicações para o seu tratamento; e meninos também muito interessados em campeonatos de fisiculturismo desde muito cedo, aos 14, 15 anos.”

Tudo começa com a vontade de controlar um corpo em mudança

“Ao longo da nossa infância, nós desenvolvemos um mapa do nosso corpo, uma imagem de quem somos. A partir do momento em que há mudanças muito rápidas, na puberdade — 8 ou 9 anos para as meninas, e 10 a 12 para os meninos —, quando os hormônios sexuais começam a subir, esse mapa entra em parafuso. A pessoa nota mudanças no corpo diariamente: é espinha, pelo, cheiro. A mudança gera ansiedade e o adolescente passa a se olhar demais no espelho, como se fosse uma checagem, porque ele tem uma sensação de estranhamento com o corpo previamente mapeado.”

Do espelho, nasce a ansiedade

“Se essa checagem for excessiva, começa a preocupação com coisas pequenas, como uma espinha, que pode impedir que se queira sair, com a impressão de que todos vão notar um defeito.

É nessa idade que surgem picos de diagnóstico de transtorno de ansiedade. O pensamento é: o que eu posso fazer para lidar com esse mapa que está sempre se modificando? Os jovens tentam controlar as mudanças pelas quais estão passando, o corpo, e entrar em um padrão parece um caminho. E aí começam as obsessões.

Com o passar do tempo, esse novo mapa vai se reconstruindo, se redesenhando e a gente começa a entrar em paz de novo com o que a gente tem. Mas esse processo é superdesafiador.”

O desejo de se sentir aceito é um motor

“Por trás disso tudo existe um desejo de se adaptar aos grupos, de ser querido pelas pessoas, um desejo real, digno e até razoável de se sentir aceito. Mas dois comportamentos preocupam: as pessoas que estão com autoestima muito baixa, com níveis de ansiedade importantes e mais tristes; e as pessoas que chegaram a um padrão ‘ideal’ e que não conseguem se libertar dessa prisão.

Os jovens buscam o controle mas também o pertencimento

É como os mais populares da escola: se manter popular é uma das coisas mais complicadas para um adolescente nos dias de hoje. Há estudos que mostram que crianças populares estão em risco porque têm que fazer coisas danosas a elas mesmas para se manter no posto.

Os jovens buscam o controle mas também o pertencimento, a aceitação muito grande dos outros e isso acaba gerando um comportamento obsessivo. Fazer exercícios para se sentir bem consigo mesmo é saudável, o problema são os extremos.”

A internet tem um peso forte

“Um influenciador que fala do corpo natural, da importância do cuidado com a saúde, do não uso de álcool e outras drogas pode ser superlegal. Mas a internet também leva a extremos, com informações que podem não ser corretas ou adequadas para a idade. Há adolescentes que querem utilizar substâncias que podem não ter benefício nenhum, mas na internet há conteúdos que pregam suas vantagens. O pior de tudo é a quantidade de informação sobre esteroides.”

E até o contexto político polarizado pode afetar a escolha por um padrão

Eu tenho visto muitas meninas preocupadas, com uma pauta mais humanizada, voltada ao coletivo e ao futuro, e muitos meninos igualmente preocupados, tentando resgatar um poder masculino que parece perdido. Isso me leva de novo à ideia do controle frente ao desconhecido, da necessidade de se ter controle sobre algo, nem que seja sobre o próprio corpo, nesse mundo tão complexo.

Se eles não podem sonhar em ter um Porsche, eles querem ser o Porsche

Por outro lado, também percebo meninas que se objetificam ao perceberem que existe poder em se ser um objeto de desejo das pessoas. Nos meninos, a busca pelo abdômen perfeito tem a ver com a busca por um padrão de excelência, de demonstração de poder. Mas, para além disso, esses comportamentos refletem também uma necessidade de controle do próprio corpo que está em transformação.

Vivemos em um mundo em que as formas de demonstrar poder estão ficando escassas. Os jovens têm percebido que as chances de se ganhar muito dinheiro vêm sendo menores, e as mídias sociais constantemente nos transbordam com histórias de sucesso alheio, fazendo parecer que nada do que se conquista é suficiente. Assim, em busca de se sobressaírem, os jovens se apegam ao que podem. Se eles não podem sonhar em ter um Porsche, eles querem ser o Porsche.”

Como identificar que existe um problema

“Há dois aspectos fundamentais, o emocional e o funcional. No primeiro, há sofrimento, ansiedade, muita preocupação com o julgamento do outro, com o futuro, com a crença de que não se é uma pessoa gostável, de que não vai fazer amigos, de que vai ser zoado. Há uma distorção da realidade: ‘As pessoas não gostam de mim porque estou gordo ou por causa do meu cabelo ou da minha pele’. É preciso estar alerta para a distorção e o sofrimento.

O funcional é quando a pessoa fica tão obcecada por algo que começa a não se dedicar a outras que são importantes: deixa de jantar com a família porque sabe que vai ser forçada a comer, por exemplo, ou gasta muito tempo estudando sobre calorias e esteróides.

E há também os sinais claros, visíveis, de algo está errado, como a perda de peso ou o ganho de massa muito rápido.”

Como se aproximar numa fase da vida em que a ruptura é o mais comum

“Existe uma leitura que pode ser feita que é a do exercício ou a alimentação como algo saudável e os pais podem se aproximar com essa abordagem. Buscar uma aproximação para entender o que está acontecendo, buscar uma nutricionista para entender melhor os alimentos, como a gente pode se alimentar melhor, que objetivos é que se tem com a dieta. A meta é ficar saudável ou alcançar um padrão para mostrar a outras pessoas?”

Lembre-se que o diálogo é uma via de duas mãos…

“O diálogo com pais de adolescente tem um problema: costuma ser de mão única, é basicamente um interrogatório: ‘Me conta o que você acha de determinada coisa, como é, o que que você acha da creatina, como foi a escola hoje?’. É muito pouco comum eu ver pais que falam do seu dia, que contam uma coisa boa ou uma coisa chata que aconteceu. É uma aproximação de cima para baixo, em que o adolescente fica na posição de sempre reportar. Isso não é uma conversa, não é assim que eu converso com os meus amigos.”

…E que você também já passou por algo parecido

“Precisamos lembrar de quando éramos adolescentes, o que era importante para nós? Essa é uma parte fundamental da conversa, antes do sermão. É importante também surpreender o adolescente. Ele espera do adulto um tipo de fala já pré-concebida e, quando fazemos um caminho diferente, em que falamos da nossa adolescência ou trazemos uma informação diferente, há uma chance muito maior de desenvolver um diálogo de verdade.”