O acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA) que clarifica a isenção fiscal na venda de partes (quinhões) de heranças, antes da partilha de bens entre os herdeiros, já está a ter consequências na resolução de litígios pendentes a favor do contribuintes. E pode vir a fundamentar pedidos de reembolso e revisão dos impostos cobrados e até influenciar a forma como, no futuro, os herdeiros vão gerir as heranças, admitem os fiscalistas ouvidos pelo Observador.
Ainda que o raio de alcance já tenha sido limitado por uma informação vinculativa e instrução divulgadas pela Autoridade Tributária (AT) na semana passada, em resposta às dúvidas suscitadas pelos contribuintes. Nestas clarificações, a AT diz que quando está em causa a venda pelos herdeiros de um bem imóvel específico herdado, os ganhos gerados pela operação já estão sujeitos ao pagamento de IRS.
No essencial, o STA considerou que a venda de um quinhão hereditário não configura “alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis”, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRS, pelo que não estão sujeitos a este imposto os eventuais ganhos resultantes dessa alienação”.
Esta conclusão, explicam ao Observador Anabela Silva e Joana Aranda Freitas, partners da EY, “decorre do entendimento que enquanto a herança se mantiver indivisa, cada herdeiro é titular de um direito a uma quota de uma massa de bens, que constitui um património autónomo e não detém um direito individual sobre cada um dos bens que a integram. Por isso, conclui o tribunal, a alienação de quinhão hereditário, mesmo que a herança seja apenas constituída por bens imóveis, não configura uma alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis sujeita a IRS”.
A decisão de abril é o resultado de um pedido de clarificação apresentado pelo próprio fisco, na sequência de entendimentos divergentes de tribunais administrativos e tribunais arbitrais, e, como tem carácter uniformizador, a AT é obrigada a seguir a orientação mudando as instruções aos serviços e, ao mesmo tempo, corrigir liquidações feitas indevidamente (à luz do acórdão) de IRS sobre mais-valias que estejam em contestação ou litígio. No entanto, nos casos em que a liquidação foi feita e não contestada, cabe aos contribuintes tomarem a iniciativa. O prazo limite para esta via são quatro anos após a liquidação, como explicaram ao Observador fiscalistas da PwC e da EY.
Apesar de a AT já estar a anular liquidações indevidas, uma das informações vinculativas sobre o impacto deste acórdão — emitidas a pedidos de contribuintes — limita a abrangência das transações relacionadas com a venda de imóveis herdados que podem vir a beneficiar da isenção fiscal. Estas duas tomadas de posição ajudam ainda a perceber as diferenças no tratamento fiscal de operações que podem parecer comparáveis.
Um dos casos envolve a venda de um imóvel realizada em conjunto por dois irmãos, enquanto únicos dois herdeiros dos bens dos pais. Tendo esta alienação sido realizada sem que tivesse sido efetuada previamente uma partilha de bens, o contribuinte considerou que não houve uma transmissão de direitos reais sobre bens imóveis identificáveis.
A AT confirma que os ganhos pela alienação do direito à herança ou de quinhão hereditário não estão sujeitos a tributação em IRS, mesmo em casos em que a herança indivisa seja composta por um ou vários bens imóveis. No entanto, limita o alcance da isenção. “De ressalvar que esse entendimento aplica-se apenas quando decorrer inequivocamente, da escritura pública, ou documento similar, que se transmite o direito de um ou vários herdeiros à herança, ou quinhão hereditário, como um todo”.
Ou seja, só ficam abrangidos os atos de alienação de herança ou de quinhão hereditário que incidam sobre “a universalidade de bens e direitos — um todo que compõe a herança indivisa — ainda que não partilhada”. Logo, “não se confunde com a alienação de bens específicos que compõem a herança indivisa, efetuada conjuntamente por todos os herdeiros”.
Estando em causa a venda de uma coisa certa e determinada — o imóvel — e não a totalidade da herança ou os respetivos quinhões hereditários passa a ser uma transação sujeita a impostos — IRS sobre mais-valias — porque “configura uma transmissão onerosa de direitos reais sobre bens imóveis”. Foi o que aconteceu no caso referido.
Outra dúvida chegada ao Fisco refere-se a uma venda por um herdeiro da parte a que tinha direito numa herança indivisa a outro herdeiro. O contribuinte verificou que o valor correspondente à sua quota parte no imóvel tinha sido inscrita no quadro 4 do anexo G (onde são declaradas as mais-valias) durante preenchimento automático feito pelos serviços fiscais, o que pressupõe que se trata de uma transação sujeita à tributação de mais-valias. O contribuinte alega que o valor recebido não corresponde à venda de um imóvel, mas sim à venda de um quinhão hereditário e pede que não haja tributação em IRS.
Perante a situação exposta, o Fisco considera que a venda é uma transmissão onerosa de quinhão hereditário, do qual o requerente era titular por ter herdado da avó. E não é uma transmissão onerosa de direitos reais sobre bens imóveis. Como tal, não fica sujeita a tributação.
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Segundo Anabela Silva e Joana Aranda Freitas, da EY, os dois entendimentos cabem na jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal Administrativo. A “fundamentação do acórdão é a de que a herança indivisa constitui uma universalidade de bens, um património autónomo partilhado em regime de comunhão (e não de compropriedade) pelos co-herdeiros, que não detêm qualquer direito próprio sobre cada bem individualizado que faz parte da herança indivisa, não estando portanto em causa a alienação de bens individualizados”.
Diferente, dizem, “será o caso em que sejam alienados bens específicos e determinados que compõem a herança indivisa (i.e. mesmo antes da partilha), em que, atento também ao respetivo documento de suporte, se deverá considerar estar perante uma alienação onerosa sujeita a IRS em sede de Categoria G”.
Logo, a posição da AT “é a de que a alienação da herança ou a alienação do quinhão hereditário tem por objeto a universalidade de bens e direitos (um todo) que compõem a herança indivisa ou o quinhão hereditário e não qualquer direito individual sobre os bens ou direitos que integram a herança”.
O facto de todos os herdeiros venderem os respetivos quinhões na mesma operação parece reforçar o entendimento da AT de que o imposto se aplica.
Não sendo possível estimar o número de casos abrangidos, as duas fiscalistas da EY acreditam que a decisão terá “impacto já que é um tema que vinha gerando muita controvérsia e que parece não estar ainda totalmente clara a posição da AT atento os recentes esclarecimentos publicados no Ofício-Circulado”. E quando questionadas sobre se a mesma pode vir a influenciar a gestão da herança por futuros herdeiros, admitem que é uma possibilidade, “tendo nomeadamente em conta possíveis conflitos entre herdeiros e a eventual falta de liquidez.”
Face à clarificação da jurisprudência , a AT é obrigada a rever as orientações contrárias definidas anteriormente e aplicar a jurisprudência nos casos que estão em litígio, refere Fábio Olmo da EY. E já o terá feito, segundo informação consultada pelo Observador, com a indicação de anulação das liquidações de IRS que contrariam a leitura do STA.
Fonte oficial do Ministério das Finanças remete para o ofício circulado de 25 de julho de 2025 no qual é transmitido que “o entendimento que decorre daquele acórdão terá efeitos imediatos em todos os processos de contencioso administrativo ou judicial pendentes ou que venham a ser instaurados dentro dos prazos legalmente previstos para o efeito.”
Para quem declarou e pagou (indevidamente) a mais-valia, a via é a apresentação de uma reclamação graciosa, mas o prazo é de 120 dias após a liquidação, o que limita este recurso aos que reportaram a mais-valia no IRS de 2024, avisa Fábio Olmo.
Para estas situações, há a possibilidade de invocar erro na declaração de rendimentos e avançar com uma reclamação graciosa no prazo de dois anos a contar do termo do prazo legal para a entrega da declaração.
Outra via à disposição dos contribuintes, referem os fiscalistas da EY e da PwC, é o recurso à revisão oficiosa do ato tributário que foi a liquidação, agora considerada indevida, do imposto. O prazo para esta via é de quatro anos após a liquidação, sendo o fundamento um erro imputável aos serviços. Há ainda a opção de recorrer à via judicial, seja via tribunais administrativos, seja tribunais arbitrais.